sábado, 24 de março de 2012

Quem poderá compreender a riqueza de uma só das vossas palavras?

Imagem via Blue Pueblo

Quem poderá compreender, Senhor, toda a riqueza de uma só das vossas palavras? Como o sedento que bebe da fonte, muito mais é o que perdemos do que o que tomamos. A palavra do Senhor apresenta aspetos muito diversos, segundo as diversas perspetivas dos que a estudam. O Senhor pintou a Sua palavra com muitas cores, a fim de que cada um dos que a escutam possa descobrir nela o que mais lhe agrada. Escondeu na sua palavra muitos tesouros, para que cada um de nós se enriqueça em qualquer dos pontos que medita.

A palavra de Deus é a árvore da vida, que de todos os lados oferece um fruto bendito, como a rocha que se abriu no deserto, jorrando de todos os lados uma bebida espiritual. «Comeram – diz o Apóstolo – uma comida espiritual e beberam uma bebida espiritual.»

Aquele que chegou a alcançar uma parte deste tesouro, não pense que nessa palavra está só o que encontrou, mas saiba que apenas viu alguma coisa de entre o muito que lá está. E porque apenas chegou a entender essa pequena parte, não considere pobre e estéril esta palavra; incapaz de apreender toda a sua riqueza, dê graças pela sua imensidade inesgotável. Alegra-te pelo que alcançaste, e não te entristeças pelo que ficou por alcançar. O que tem sede alegra-se quando bebe, e não se entristece por não poder esvaziar a fonte. Vença a fonte a tua sede, e não a tua sede a fonte, poderás ainda beber dela quando voltares a ter sede; se, ao contrário, saciada a sede, secasse a fonte, a tua vitória seria a tua desgraça.

Dá graças pelo que recebeste, e não te entristeças pelo que sobrou e deixaste. O que recebeste e alcançaste é a tua parte, e o que deixaste é ainda a tua herança. O que não podes receber imediatamente por causa da tua fraqueza, poderás recebê-lo noutra altura se perseverares. E não tentes avaramente tomar tudo dum só fôlego o que não podes abarcar duma vez, nem desistas, por preguiça, do que podes ir conseguindo pouco a pouco.

- Santo Efrém
Reproduzido via Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (Portugal)

O que o Concílio quis


A controvérsia sobre o futuro da Igreja é também um debate em torno da interpretação do Concílio Vaticano II, que foi aberto há 50 anos. 


(Leia também: Padres da geração Vaticano II ainda adotam modelo do Concílio, apesar de retrocessos)

A análise é do teólogo alemão Jan-Heiner Tück, professor de dogmática da Faculdade de Teologia da Universidade de Viena, na Áustria. O artigo foi publicado pela revista Christ in der Gegenwart (Freiburg i. Br.) 6/2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


O Concílio chegou com um atraso de 50 anos. Ele deu respostas a perguntas que ninguém mais fez. Os bispos reunidos naquele momento pertenciam predominantemente à burguesia e ignoraram a situação opressiva dos pobres. Esse balanço provocativo foi globalmente formulado há alguns anos na revista Concilium pelo teólogo da libertação José Comblin (1932-2011), que morreu recentemente.

O grande interesse que o Concílio atualmente levanta parece contradizer essa opinião. Inegavelmente, 50 anos depois, ainda se dá confiança às respostas dadas então. Isso pode ser novamente encontrado, em parte, no debate em torno da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e na crítica que esta fez às afirmações centrais do Concílio. A questão tradicionalista da liberdade religiosa, da abertura da Igreja ao diálogo ecumênico e inter-religioso recriaram a consciência de que os documentos do Concílio são inevitáveis para a compreensão que a Igreja tem de si mesma. Por outro lado, há a esperança de que o Concílio forneça orientações sobre como abordar as demandas de reforma que o memorando dos 300 professores de teologia [1], mas também a Iniciativa dos Párocos Austríacos [2] levantaram.

No entanto, podemos nos perguntar, com Comblin, como a história da Igreja Católica teria sido se, com Pio X, o antimodernismo paralisante tivesse sido precocemente evitado, se a Igreja ainda no início do século XX tivesse começado uma poderosa autorrenovação e se tivesse levado a termo a abertura ecumênica e se engajado no diálogo com a modernidade. A pergunta "O que teria acontecido se?" pode ser hipotética. Mas pode nos salvar da ilusão de que tudo deveria ter acontecido como aconteceu e pode aumentar a consciência dos espaços de manobra não explorados. No entanto, um olhar semelhante sobre as coisas gera emoções nostálgicas.

"Mestre do impossível"
O idoso Papa João XXIII – seguindo um pensamento espontâneo e contra a oposição da Cúria –, em 1959, havia anunciado um concílio geral. Ele seguiu, nessa ocasião, a inspiração do Espírito, que Peter Hünermann recentemente chamou de o "Mestre do impossível". João XXIII não tinha nenhuma ideia precisa sobre como o Concílio deveria ocorrer, mas se deu alguns objetivos: ele deveria ser orientado "pastoralmente" e dispensado de apresentar questões magisteriais e disciplinares. Devia promover a unidade dos cristãos e dar uma versão atual da fé, sem aliená-la no momento presente. Aggiornamento [atualização] era a palavra de ordem do papa, que a deu a entender claramente. Aos "profetas da desgraça", que retratam o mundo com cores pessimistas, o papa comunicou, no discurso de abertura do Concílio, em outubro de 1962, a sua rejeição. Ele falou do um "novo Pentecostes" [3], que deveria superar as barreiras comunicativas entre a Igreja e o mundo, mas também superá-las dentro da Igreja.

O Concílio teria chegado ao fim antes de começar. A Cúria queria que os padres conciliares confirmassem apenas os 73 esquemas elaborados pelas comissões preparatórias. Pode-se reconhecer como um ato cheio de consequências de autoafirmação episcopal o fato de eles terem se recusado a fazer isso no início da primeira sessão. Eles discutiram na aula conciliar as questões na agenda e lançaram assim um verdadeiro processo conciliar.

A percepção que a Igreja tem de si também mudou no Concílio por causa da presença de bispos provenientes da América Latina, da África e da Ásia. A Igreja eurocêntrica, que ainda havia dominado o Concílio Vaticano I, havia se despedaçado. Os pobres e os excluídos das chamadas Igrejas de missão não eram mais apenas objeto de discussão, mas o determinaram – mesmo que só inicialmente. Nisso é preciso dar razão a Comblin. Karl Rahner falou do Concílio Vaticano II como da "primeira atuação oficial da Igreja como Igreja mundial" [4].

Os "hereges" se tornam "irmãos"
Já o convite de observadores não católicos por parte do Secretariado para a União dos Cristãos, presidido pelo cardeal Agostino Bea, exerceu uma considerável influência sobre as discussões. É diferente se se fala dos outros – o que os leva também discursivamente a desaparecer – ou se se fala com eles e se busca uma linguagem que faz justiça à compreensão que eles têm de si mesmos. Assim, de "hereges" e "cismáticos" – essa ainda é a linguagem do Código de Direito Canônico de 1917 – tornaram-se "irmãos separados" na fé.

A relação com as outras religiões também foi posta sobre novas bases. O Concílio traz o ensino da história para condenar toda forma de antissemitismo e reconhece o judaísmo como raiz do cristianismo. De "assassinos de Deus", tornam-se "irmãos prediletos e, de certa modo [...] os irmãos mais velhos", como João Paulo II chamou os judeus na Grande Sinagoga de Roma em 1986 [5]. Às outras religiões é reconhecido que, nelas, encontram-se elementos de verdade e de santidade.

No fim, a fronteira entre crentes e não crentes também não é mais traçada de modo tão claro: como ateus, são "homens de boa vontade" em busca. O ateísmo moderno é reconhecido "entre as realidades mais graves do nosso tempo" [6]. As variedades de ateísmo são levadas em consideração de modo diferenciado. Autocriticamente, a Igreja se pergunta se ela, por culpa própria, bloqueou o acesso à fé aos não crentes. Esse despertar dialógico está atualmente em risco de novo. Há vozes que desejam uma demarcação mais rigorosa do território e que convidam a Igreja a ser uma alternativa com relação ao crescente pluralismo da modernidade tardia. Isso certamente está associado ao fato de que, aqui e ali, chegou-se, em nome da abertura ao diálogo, a um ofuscamento da indefinição. Mas nem a camaleônica adaptação às tendências do tempo, nem a restauração antimodernista da Igreja como bastião da verdade correspondem à preocupação fundamental do Concílio Vaticano II, que legou o retorno às fontes da Escritura e da tradição ao sentido vivo pelos sinais do tempo.

O Concílio tomou decisões vinculantes em nível de Igreja universal. A memória desse fato é importante para o futuro da Igreja. No entanto, o modo para ler os documentos conciliares é controverso. De fato, o princípio da interpretação clássica dos concílios, para o qual os documentos devem ser lidos segundo as interpretações doutrinais condenadas, não se sustenta com relação ao Concílio Vaticano II. Evitaram-se voluntariamente as condenações dogmáticas e escolheu-se uma linguagem pastoral expressiva. Além disso, trata-se, em muito documentos, de textos de compromisso em que se encontram afirmações opostas e nem sempre mediadas.

No estado atual, portanto, confrontam-se entre si diversos modos de leitura: para uns, as reformas, iniciadas pelo Vaticano II, não vão muito longe. Eles se referem ao espírito do Concílio para ir além da letra de alguns textos. Para outros, a dinâmica da renovação pós-conciliar foi longe demais. Eles leem os textos à luz dos concílios anteriores e buscam enfraquecer o impulso à reforma. Uma terceira interpretação faz uso de uma paciente releitura dos documentos conciliares para encontrar neles orientações voltadas a uma autocompreensão por parte da Igreja. A controvérsia em curso sobre o futuro da Igreja também é, portanto, uma disputa sobre a interpretação do Concílio.

A disputa entre Hünermann e Bento XVI
Assim, quase por coincidência, Bento XVI, juntamente com Hans Küng, um dos poucos coatores ainda vivos do Concílio, se expressou na sua mensagem de Natal antes de 2005 sobre a questão da interpretação do Concílio. O papa rejeita as leituras que estão sob o sinal da ruptura e que colocam uma divisão entre Igreja pré e pós-conciliar. Esses modos de ler os documentos conciliares se reencontram tanto em nível tradicionalista quanto liberal.

O próprio papa percorre um caminho do meio e promove uma hermenêutica da reforma ou, melhor, uma compreensão e uma interpretação da continuidade nos aspectos fundamentais e da mudança sobre os problemas individuais que devem caminhar juntas. Resta uma questão em aberto, no entanto: saber como tal hermenêutica da reforma deveria se articular.

O "conflito das interpretações", aqui apenas mencionado, demonstra que, 50 anos depois do Concílio, nos encontramos novamente em uma transição epocal. A memória comunicativa, capaz de se apoiar sobre atores e testemunhas do Concílio e, portanto, de contar com a tradição oral, cede cada vez mais lugar à memória cultural, que se baseia no trabalho dos documentos aprovados.

O teólogo de Tübingen Peter Hünermann destacou, em 2005, o estado constitucional dos documentos do Concílio e comparou os textos com os documentos constitucionais. Assim, provocou uma reação papal que foi pouco considerada.

Poucas semanas depois, Bento XVI respondeu a Hünermann no seu discurso de Natal antes citado. Em um debate semelhante, "confunde-se na raiz a natureza de um Concílio como tal. Desse modo, ele é considerado como uma espécie de constituinte, que elimina uma constituição velha e cria outra nova. Mas a constituinte precisa de um mandante e, depois, de uma confirmação por parte do mandante, isto é, do povo ao qual a constituição deve servir. Os Padres não tinham tal mandato e ninguém jamais lhes havia dado; de resto, ninguém podia dá-lo, porque a constituição essencial da Igreja vem do Senhor" [7].

Como deve ser uma Constituição?
A diferenciação feita pelo papa não foi ignorada por Peter Hünermann. Ele ressaltou expressamente que a legitimação do Concílio e da sua autoridade são substancialmente diferentes daquelas de uma assembleia constituinte em âmbito estatal. A autoridade dos bispos vem de Jesus Cristo e, desse modo, é diferente da dos representantes eleitos pelo povo.

Por outro lado, parece que, para o papa, não merecem uma discussão as semelhanças às quais Hünermann acenou: uma profunda crise como ocasião da convocação; a alta representatividade do grupo de especialistas; o recurso a tradições que marcam um caminho; o carácter de compromisso dos textos, que compõem o quadro geral, mas deixam abertos os espaços para a elaboração concreta. Esses aspectos, que caracterizam tanto os textos constitucionais, quanto os documentos do Concílio parecem ignorados pelo papa, porque ele é inteiramente guiado pela suspeita de que a comparação de Hünermann deve exigir uma leitura da ruptura.

E essa absolutamente não é a questão. Hünermann se situa no nível constitucional do texto final, para rejeitar leituras seletivas, que se apoiam ou sobre afirmações da minoria conservadora ou sobre as da maioria progressista. Ele considera inadequada a exegese "de cova", que extrai palavras-chave individuais dos documentos para sustentar os próprios pontos de vista. Pelo menos nesse ponto, o papa poderia ter se encontrado com o teólogo de Tübingen.

A comparação entre os textos constitucionais e os documentos do Concílio Vaticano II enfatiza o quanto têm valor os documentos do Concílio para a compreensão que a Igreja Católica tem de si mesma. Entre os 16 documentos aprovados, podem se encontrar, no que se refere ao gênero literário, constituições, decretos e declarações. As quatro constituições têm o maior peso em nível de magistério. Elas disseram coisas fundamentais sobre a liturgia, a Igreja, a revelação e a Igreja na modernidade.

Em primeiro lugar, há a constituição sobre a liturgia, Sacrosanctum concilium, em que se encontra a famosa expressão da liturgia como "a meta [...] e a fonte [da vida da Igreja]" (n. 10). A Igreja vive da escuta da palavra do evangelho e da celebração dos sagrados mistérios. A renovação litúrgica pós-conciliar é o fruto mais visível do Concílio: a introdução das línguas nacionais, a mudança na direção celebrativa, o princípio da participação ativa de todos os fiéis no serviço divino são sinais claros disso.

Os motivos do culto e do caráter de mistério da liturgia parecem, em comparação com isso, estar em segundo plano, embora o Concílio sublinhe mais de uma vez a atualização do mysterium pascal – que é o sofrimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo – forma o núcleo incandescente da ação litúrgica da Igreja. O fato de, atualmente, se discutir uma "reforma da reforma" mostra que ainda temos dificuldades para modelar uma liturgia renovada.

A constituição sobre a Igreja, Lumen Gentium, mudou a concepção contrarreformista restrita da Igreja como "sociedade perfeita" (societas perfecta) ordenada hierarquicamente e a descreveu como mysterium, sacramento universal de salvação. A Igreja não é um fim em si mesma, vem de Cristo e deve testemunhar a sua mensagem ao mundo de hoje.

O Concílio salienta, por primeiro, a vocação de todos os batizados, iniciando com o capítulo sobre o povo de Deus a caminho passando para o da hierarquia eclesiástica. Todos têm parte na força do batismo e da confirmação ao sacerdócio real de Jesus Cristo.

As possibilidades inerentes a esse motivo, importante também ecumenicamente, do sacerdócio comum de todos os fiéis estão quase esgotadas. Se todos os fiéis – leigos ou clérigos – testemunhassem de modo franco e desenvolto a sua fé em palavras e ações nos diversos contextos da sociedade, a Igreja poderia estar presente hoje de um modo diferente. A renúncia a uma pastoral de apoio clericalmente centrada é esperada há muito tempo.

No capítulo sobre a constituição hierárquica da Igreja, foi reiterado o primado do papa (primazia jurídica), instituído pelo Concílio Vaticano I em 1870, mas integrada pelo princípio da colegialidade episcopal. A Igreja é uma rede de Igrejas locais episcopalmente constituídas entre si em estreita comunhão (communio). A Igreja não pode ser compreendida unilateralmente a partir da sua sede central. É importante reequilibrar, todas as vezes, a relação entre Igreja universal e Igrejas locais.

Adeus ao baluarte
A constituição sobre a revelação, Dei Verbum, inaugurou uma compreensão mais profunda da revelação. Se, antes, a revelação foi entendida como instrução, como transmissão de decretos e instruções divinas, ela é agora descrita como a autocomunicação histórica de Deus – como uma espécie de processo comunicativo, que introduz os fiéis na amizade de Deus. Essa compreensão histórica da revelação deveria ser hoje declarada em termos claros a respeito dos abismos da história humana de sofrimento e de culpa.

Ao mesmo tempo, a Dei Verbum se expressou de modo diferenciado sobre a relação entre a Escritura e a tradição, e aprovou o uso dos métodos histórico-críticos, há muito tempo rejeitados pelo magistério. No entanto, o Concílio, ao mesmo tempo, confiou aos exegetas a tarefa de ler a Escritura "com o mesmo espírito com que foi escrita" (n. 12) e de levar adiante uma interpretação teológica que inclua a "Tradição viva de toda a Igreja" (Ibid.). A exegese como disciplina teológica se anularia por si mesma se ignorasse esse requisito e se limitasse exclusivamente a análises historiográficas e filológicas.

A constituição pastoral Gaudium et Spes é, por fim, classificada por alguns como o documento mais importante do Concílio. Ela levou a termo o diálogo aberto com a modernidade e compreendeu os desafios que o progresso científico e tecnológico, a globalização e a dinâmica transformadora das sociedades modernas representam para a fé. A Igreja Católica não é mais posta como um baluarte contra a modernidade. Ela mesma se vê inserida nos processos de transformação e é chamada, nos diversos lugares da política, da economia, da sociedade, da ciência e da cultura, a testemunhar o evangelho.

A automodernização recuperada da Igreja Católica se torna tangível, do mesmo modo, na declaração Dignitatis humanae, que reconhece explicitamente o direito à liberdade de religião e de consciência. No seu Syllabus errorum [8] de 1864, Pio IX havia rejeitado, entre os erros do tempo, também as liberdades religiosa e de consciência.

No entanto, em 1960, o cardeal Alfredo Ottaviani, como prefeito do Santo Ofício, mais tarde Congregação para a Doutrina da Fé, encarregado por João XXIII pela preparação do Concílio, se manifestou criticamente contra um novo liberalismo católico. Sobre a relação entre Igreja Católica e Estado, ele afirmou: "Pode-se dizer que a Igreja Católica precisa de dois pesos e de duas medidas. Porque, onde ela governa, quer limitar os direitos das outras fés, mas, onde forma uma minoria de cidadãos, quer a paridade de direitos como os outros. A resposta é: na realidade, dois pesos e duas medidas são aplicáveis, uma para a verdade, a outra para o erro" [9].

Uma das grandes conquistas do Concílio é que ele superou essa posição, que até hoje é mantida pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X, e reconheceu a liberdade religiosa e de consciência como direitos humanos. Isso não pode ser posto em discussão.

Notas:
1. Igreja 2011: Pôr-se a caminho é necessário, assinado pela maioria dos teólogos alemães e publicado no dia 3 de fevereiro de 2011 no jornal Süddeutsche Zeitung, de Munique (Alemanha).
2. Cf. o ato de fundação e a coletiva de imprensa do dia 25 de abril de 2006 no Café Landtmann de Viena (Áustria).
3. Audiência geral da quarta-feira 24 de outubro de 1962
(cf. http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/audiences/documents/hf_j-xxiii_aud_19621024_it.html).
4. Interpretação teológica fundamental do Concílio Vaticano II, em Sollecitudine per la chiesa. Nuovi saggi VIII. Roma: Paoline, 1982, p.344.
5. Il Regno-documenti 9/1986, p.279.
6. Gaudium et spes 19.
7. Audiência de Natal da Cúria Romana. Discurso do dia 22 de dezembro, em Il Regno-documenti 1/2006, 8.
8. H. DENZINGER, Enchiridion Symbolorum. Bolonha: Dehoniane, 1995, nn. 2846s.
9. "Dices fortasse: ergo ecclesia duo pondera habet et duas mensuras, quia ubi ipsa dominatur vult ut coërceantur dissidentes, ubi autem minoritatem civium constituit, non fert ut ipsa habeatur in inferiori condicione iuridica. Aperte respondendum est reapse esse adhibenda duo pondera, duasque mensuras, pro diversitate iurium et meritorum" (Institutiones iuris publici ecclesiastici, II: Ecclesia et Status, Typis polyglottis vaticanis, Roma 1960, 72-73 n. 201).

O lado positivo de alguém que você conhece


"Qual o nome do(s) soropositivo(s) que você conhece? Não, você conhece algum soropositivo. Conhece sim, porém, você não sabe que essa pessoa tem o vírus da AIDS em seu corpo. Agora responda para si mesmo como você agiria com essa pessoa se você soubesse que ela tem HIV, o que você pensaria dela ou de si mesmo? Quais as chances dessa informação não fazer nenhuma diferença na forma que você pensa sobre essa pessoa? Pense agora na resposta da maioria das pessoas a essas últimas perguntas, lembre-se que elas responderiam apenas para elas mesmas, imagine o que elas pensariam e como agiriam se soubesse que alguém é soropositivo. Entendeu porque você acha que não conhece nenhum soropositivo?"

São Romero da América Latina

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Neste sábado, 24 de março, celebra-se o aniversário da morte do arcebispo salvadorenho Óscar Romero, assassinado há 22 anos, enquanto estava celebrando a missa. Uma figura única no panorama não só da Igreja, mas da história, um mártir que deu plenitude à sua existência mediante a centralidade daqueles princípios de solidariedade e de missão que inspiraram a sua vida.

Mas por que ainda o forte desejo de celebrar a sua recordação depois de tanto tempo? Por um lado, seguramente, por causa da beatificação ainda em aberto, mas principalmente por causa das características fundamentais da sua obra, capaz de atuar para que a mensagem evangélica pudesse se traduzir concretamente em ações pelo seu povo, pela sua gente. Elemento de continuidade entre então e hoje é a dramática situação econômica do Estado salvadorenho, com cerca de 80% da população abaixo do nível mínimo de pobreza e com taxas de desemprego recordes.

Recordar Romero hoje não só onde ele atuou, mas em todo o mundo, significa, acima de tudo, posicionar a questão da pobreza, da luta contra a exclusão como central na ação da Igreja e dos Estados, significa reportar concretamente o sofrimento a paradigma de uma época como a nossa, em que ele se manifesta de várias formas; significa refocalizar a atenção da Igreja sobre o povo, entendido como companheiro e destinatário das atenções e da solidariedade humana profunda, orientar a política à busca do bem comum.

Romero, com a sua conduta, configura uma Igreja profética, pobre, aberta, uma Igreja não elitista, mas popular; ele convidou os ricos à conversão e à partilha plena das suas riquezas e posses. Em sua última homilia, ele apelou de maneira direta à consciência dos soldados para que não matassem, para que recusassem uma ordem contrária à vontade de Deus. Essa é uma mensagem que repropõe a atualidade de um pacifismo não retórico e animado constantemente por grupos de traço religioso.

A atualidade dessas mensagens e a modernidade veemente que delas se move estão na base da histórica visita que, no ano passado, o presidente Obama fez a El Salvador, visita que se concluiu precisamente com a visita ao túmulo do arcebispo. Os escritos de Romero nos oferecem hoje um ponto do qual partir, ou talvez partir de novo, memórias que têm a força da profecia e que, se lidas atentamente, podem fornecer uma agenda, ainda antes do que para a Igreja, para a Política.

"Uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida com a libertação do homem todo e de todos os homens".

- Francesco Scoppola, em artigo publicado no jornal italiano L'Unità, 22-03-2012.
Tradução: Moisés Sbardelotto, via IHU. Grifo nosso.

O atrativo de Jesus

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Uns peregrinos gregos que vieram celebrar a Pascoa dos judeus aproximaram-se de Felipe com uma petição: «Queremos ver Jesus».

Não é curiosidade. É um desejo profundo de conhecer o mistério que se encerra naquele Homem de Deus. Também a eles lhes pode fazer bem.

Jesus é visto preocupado. Dentro de uns dias será crucificado. Quando lhe comunicam o desejo dos peregrinos gregos, pronuncia umas palavras desconcertantes: «Chega a hora de que seja glorificado o Filho do Homem». Quando for crucificado, todos poderão ver com claridade onde está a Sua verdadeira grandeza e a Sua glória.

Provavelmente ninguém entendeu nada. Mas Jesus, pensando na forma de morte que o espera, insiste: «Quando Eu for elevado sobre a terra, atrairei todos até Mim». Que se esconde no crucificado para que tenha esse poder de atração? Apenas uma coisa: O Seu amor incrível a todos.

O amor é invisível. Só o podemos ver nos gestos, nos sinais e na entrega de quem nos quer bem. Por isso, em Jesus crucificado, na Sua vida entregue até à morte, podemos perceber o amor insondável de Deus.

Na realidade, só começamos a ser cristãos quando nos sentimos atraídos por Jesus. Só começamos a entender algo da fé quando nos sentimos amados por Deus.

Para explicar a força que se encerra na Sua morte na cruz, Jesus utiliza uma imagem simples que todos podemos entender: «Se o grão de trigo não cai na terra e morre, fica infecundo; mas se morre, dá muito fruto».

Se o grão morre, germina e faz brotar a vida, mas se se encerra no seu pequeno invólucro e guarda para si a sua energia vital, permanece estéril.

Esta bela imagem descobre-nos uma lei que atravessa misteriosamente a vida inteira. Não é uma norma moral. Não é uma lei imposta pela religião. É a dinâmica que torna fecunda a vida de quem sofre movido pelo amor. É uma ideia repetida por Jesus em diversas ocasiões: Quem se agarra egoistamente à sua vida, deita-a a perder; quem sabe entrega-la com generosidade gera mais vida.

Não é difícil comprová-lo. Quem vive exclusivamente para o seu bem-estar, o seu dinheiro, o seu êxito, a sua segurança, acaba vivendo uma vida medíocre e estéril: a sua passagem por este mundo não faz a vida mais humana. Quem se arrisca a viver uma atitude aberta e generosa, difunde a vida, irradia alegria, ajuda a viver. Não há uma forma mais apaixonante de viver que fazer a vida dos outros, mais humana e leve.

Como poderemos seguir Jesus se não nos sentimos atraídos pelo Seu estilo de vida?

- José Antonio Pagola
Reproduzido via Amai-vos

sexta-feira, 23 de março de 2012

O reino dos céus está próximo

Foto: i can read

O reino dos céus está próximo. Este é o subtexto de todas as práticas da Quaresma, que são projetadas para nos lembrar quão facilmente nos esquecemos disso e como é possível simplesmente recordar.

Etty Hillesum era uma mulher vivaz, jovem judia que morreu em Auschwitz em 1943. No meio do horror da deportação dos judeus de sua Holanda natal, ela passou por um despertar espiritual pessoal que ressoou nas últimas décadas. Sustentada por seu profundo mundo interior e por uma nova visão da vida humana, ela se dedicou a aliviar a miséria de seus companheiros de sofrimento. Ela se recusou a odiar os seus perseguidores e nas flores e céu ao seu redor ela encontrou tesouros inesgotáveis de beleza e revelação.

Uma das pessoas a quem ela estava ajudando uma vez perguntou-lhe como ela podia perder tempo pensando em flores no meio de sua provação.

Ela descobriu Deus ao se abrir ao mundo interior. Mas ela não parecia se preocupar sobre como as religiões competem entre si. Uma vez ela estava expressando algumas ideias sobre o perdão e alguém respondeu: "Mas isso soa como o Cristianismo". "Sim", respondeu ela, "Cristianismo, e por que não?".

Seja qual forem as ansiedades e medos que carregamos conosco hoje - e eles certamente devem ser menores do que aqueles que ela e seus companheiros judeus sofreram na época da loucura - a flor e a fé capazes de mergulhar-nos nas profundezas de Deus estão ao alcance da mão.

- Laurence Freeman OSB
Mensagem da quarta-feira da Terceira Semana da Quaresma (14/03/12) à Comunidade Mundial de Meditação Cristão no Brasil

Fazer a hora ou esperá-la? #CasamentoIgualitário

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Hoje entrou no ar o site www.casamentociviligualitario.com.br. A iniciativa visa angariar apoio da opinião pública para o projeto de emenda constitucional apresentada pelo deputado federal Jean Wyllys que almeja garantir por lei a casais gays a instituição do casamento civil, com os mesmos direitos e deveres dos casais héteros.

Acho admirável qualquer iniciativa que vise retirar-nos da situação de sub-cidadania em que, ainda, vivemos. O termo “casamento” ou “matrimônio” sempre gera bastante polêmica, como se tais palavras fossem de uso exclusivamente religioso, o que é uma bobagem. O “casamento civil” está aí, justamente, para secularizar a sagrada instituição do matrimônio.

Agora não sei se, estrategicamente, é a hora para insistirmos nesta nomenclatura. Pode parecer um detalhe insignificante a princípio, mas “união civil gay” e “casamento civil gay” repercutem de modo bastante diferente na sociedade brasileira.

Se não me engano, na maioria dos lugares em que as uniões gays ganharam a nomenclatura de “casamento” foi em um momento subsequente ao do estatuto da união civil, que me parece um primeiro passo para a sociedade perceber que reconhecer, pelo direito, as uniões de fato entre pessoas do mesmo sexo não representa nenhuma ameaça real à sociedade. A não ser é claro que a heterossexualidade seja um mito e, imediatamente depois de reconhecida legalmente a união gay, todos os maridos larguem suas esposas e arranjem um bofe prometendo casa, comida e ingressos para o próximo show da Madonna.

Religião: a fronteira final do feminismo?

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Há igrejas em que as mulheres não estão autorizadas a falar em voz alta, a menos que primeiro obtenham a permissão de um homem. Há igrejas (muitas delas) em que as mulheres não têm a permissão de pregar no púlpito. Há igrejas em que um menino de 13 anos tem mais autoridade do que a sua mãe.

A batalha dos sexos, travada nesta temporada de eleições com uma fúria excessiva no espaço público, está sendo combatida em uma esfera muito mais dolorosa e privada também. Nas igrejas (e sinagogas e mesquitas) em toda a terra, as mulheres ainda são tratadas como cidadãs de segunda classe. E, como as mulheres de fé são cada vez mais chefes de família e mães solteiras, esse status diminuído está começando a se inflamar.

Há igrejas nos EUA em que as mulheres não estão autorizadas a falar em voz alta, a menos que primeiro obtenham a permissão de um homem.

Há igrejas (muitas delas) em que as mulheres não têm a permissão de pregar no púlpito.

Há igrejas nos EUA em que um menino de 13 anos tem mais autoridade do que a sua mãe.

"Na igreja, eu tinha que esconder os meus pensamentos, questões e escolhas de vida", diz Susan, uma mulher que trabalha como terapeuta em Seattle e que, depois uma vida inteira seguindo Jesus, abandonou o cristianismo. "Eu achava que eu não podia fazer nada por mim mesma, porque, como uma mulher cristã, eu aprendera que eu precisava de um homem para chegar a algum lugar".

A história de Susan foi publicada em janeiro por uma pequena editora cristã no livro "The Resignation of Eve" [A resignação de Eva]. Em suas páginas, o autor, um pastor evangélico chamado Jim Henderson afirma que, a menos que as lideranças masculinas das igrejas cristãs conservadores façam um sério exame de consciência – e logo –, as mulheres que sempre sustentaram essas igrejas com o seu tempo, seu suor e seu dinheiro irão embora. Em massa. E não vão mais voltar. Seus filhos, tradicionalmente levados à igreja por suas mães, assim, vão se juntar ao crescente número de norte-americanos que se chamam de un-churched [sem igreja].

Não interessa que a Bíblia fale sobre mulheres que se submetem a homens e se sentam silenciosamente na igreja, declama Henderson. Isso é história antiga. "Até que aqueles que têm poder (homens) decidam dá-lo àquelas que não o têm (mulheres), eu acredito que continuaremos deturpando o coração de Jesus e desfigurando a beleza do seu Reino", escreve Henderson.

Henderson reforça seu argumento com dados do Grupo de Pesquisa Barna. Entre 1991 e 2011, o número de mulheres adultas que frequentavam a igreja semanalmente diminuiu 20%. O número de mulheres que iam à escola dominical caiu cerca de um terço, assim como o número de mulheres que faziam trabalhos voluntários na Igreja.

E, embora os dados do Barna tenham sido contestados por outros pesquisadores, Henderson vai mais longe. Mesmo as mulheres que vão à igreja regularmente, diz ele, são realmente apenas a metade: seu descontentamento as impede de se engajar totalmente no projeto de ser cristão. Ele chama esse mal-estar entre as mulheres de "uma fuga de capital espiritual".

Eu penso nessas fiéis conservadoras nesta temporada política, lutando para sobreviver e manter seus olhos em Deus, enquanto os homens de direita, também conhecidos como "o patriarcado", as desrespeitam e as insultam.

Não é apenas Rush Limbaugh [comentarista político conhecido por suas posições republicanas] que avilta todas as mulheres ao chamar uma delas de "vagabunda" e de "prostituta". Também é Rick Santorum [candidato católico republicano à presidência dos EUA] – aquele homem de fé – que chegou quase a chamar as mães trabalhadoras de egoístas e que trata todas as mães solteiras como a sua "oposição", como ele fez em uma entrevista com Tony Perkins do Family Research Council no ano passado. "Elas olham para o governo pedindo ajuda e vão votar", disse Santorum. "Por isso, se quisermos reduzir a vantagem democrata, o que precisamos fazer é construir famílias biparentais".

Também é cada medida política que coloca o chamado "pequeno governo" à frente da saúde, do bem-estar e da educação das crianças.

Penso nas blogueiras do Feminist Mormon Housewives que insistem sobre a sua devoção à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, embora sensivelmente rebelando-se contra os ensinamentos que tornam as mulheres inferiores aos homens.

Penso nas mulheres da Aliança Feminista Judaica Ortodoxa, que, barradas dos papéis de liderança na sinagoga, estão começando pequenos grupos de oração por conta própria, onde podem celebrar rituais do ciclo de vida judaico em conjunto.

Penso em Kelly, uma personagem do livro de Henderson que, depois de defender as mulheres no ministério de sua igreja, recebeu o tratamento de silêncio do seu pastor durante meses. Kelly saiu dessa igreja e começou um grupo que se reúne nas salas de estar das pessoas. Lá, ela é um líder. "Essa é minha igreja, e eu a amo", diz ela. "É uma comunidade que eu cultivo e pastoreio".

As analogias políticas são claras. De acordo com uma nova pesquisa NBC/Wall Street Journal, o presidente Obama ganha em qualquer disputa contra Mitt Romney, Santorum ou Newt Gingrich. Entre as mulheres, porém, seus ganhos são enormes: 18, 24 e 27 pontos, respectivamente.

A menos que os estridentes e autoritários conservadores sociais afrouxem seu domínio repressor sobre as mulheres norte-americanas, as mulheres norte-americanas irão abandonar o Partido Republicano (assim como estão abandonando a Igreja) e irão procurar seus candidatos em outro lugar.

- Lisa Miller, editora de religião da revista Newsweek
Artigo publicado no jornal Washington Post, 08-03-2012.
Tradução: Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.

Câmara de vereadores do RJ aprova projeto que proíbe material didático sobre diversidade sexual. Prefeito Eduardo Paes, vete!

Imagem: Agência Brasil - link para reportagem especial
apresentando o problema a partir da perspectiva 
de educadores, psicólogos e das próprias vítimas

A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou um projeto de lei que proíbe a distribuição, exposição e divulgação de material didático sobre diversidade sexual no Rio de Janeiro. Elaborado pelo vereador Carlos Bolsonaro (PP-RJ), o PL 1082/2011 proíbe até orientações sobre o combate à homofobia e direitos dos homossexuais.

"A distribuição e divulgação de material didático com conteúdo sobre a diversidade sexual, pode ser considerado uma afronta aos conceitos da família tradicional, cabendo, somente à família determinar o momento certo de expor tal assunto aos seus filhos", justifica Bolsonaro, no texto do projeto. O vereador também propôs o "Dia do Orgulho Hétero" no Rio.

Os vereadores Brizola Neto (PDT), Reaimont (PT), Andrea Gouvêa Vieira (PSDB), Eliomar Coelho (PSOL) e Paulo Pinheiro (PSOL) bem que tentaram dissuadir os outros parlamentares, mas não deu. No fim, o projeto de Carlos Bolsonaro foi aprovado por 21 votos contra 9.

(Fonte: Jornal do Brasil)

Projetos como esse promovem o silêncio e a invisibilidade dos LGBTs e só contribuem para agravar ainda mais um quadro de violência que já é extremo. Não à toa, a ABGLT recentemente lançou uma campanha incentivando os alunos a denunciar homofobia (mais informações aqui)Para que se tenha uma dimensão da gravidade dessa medida, vale ler o texto Homofobia nas Escolas (aqui) e conferir a riquíssima reportagem especial da Agência Brasil, que apresenta o problema a partir da perspectiva de educadores, psicólogos e das próprias vítimas, aqui.

Diante disso, Claudio Nascimento, Superintendente de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, enviou ao Prefeito do Rio, Eduardo Paes, a seguinte mensagem:

"Prezado amigo e prefeito Eduardo Paes,

Ontem, infelizmente, foi aprovado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, com 21 votos a favor e 9 contra, o Projeto de Lei de autoria do Vereador Carlos Bolsonaro, que:

"VEDA A DISTRIBUIÇÃO, EXPOSIÇÃO E DIVULGAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO CONTENDO ORIENTAÇÕES SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL NOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO FUNDAMENTAL E DE EDUCAÇÃO INFANTIL DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS."

Parágrafo único. O material a que se refere o caput deste artigo é todo aquele que, contenha orientações sobre a prática da homoafetividade, de combate à homofobia, de direitos de homossexuais, da desconstrução da heteronormatividade ou qualquer assunto correlato.

Venho por meio deste rogar ao senhor pelo veto integral ao projeto que viola a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, os Parâmetros Curriculares Nacionais, o Estatuto da Criança e Adolescente, a Lei Municipal 2475 que proíbe a discriminação por orientação sexual e a Lei Estadual 3406 que atua no mesmo sentido.

A LDB deixa claro que deve haver pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, assim como a liberdade de ensinar. O artigo terceiro, parágrafo quarto, da LDB reza o respeito a liberdade e o apreço à tolerância.

O que esse o projeto de lei tenta fazer é jogar na lata do lixo tudo que se conquistou na Cidade e no Estado do Rio de Janeiro ao longo de décadas de atuação do movimento organizado de LGBT e também de homens e mulheres heterossexuais comprometidos com a construção de uma cidade para todos. Além disso, a LDB também cria " a proposta pedagógica que norteia o processo pedagógico da escola, que é elaborado pela própria escola, que dá a dimensão da sua autonomia".

O Projeto de lei é uma ode a intolerância, a censura prévia, a cassação da liberdade de pensamento e principalmente da instituição por lei da perseguição e do ódio aos homossexuais.

Por essa razão, peço ao senhor que vete esse projeto que poria a nossa cidade num tempo de extremo totalitarismo e obscurantismo.

Solidariamente. "

Claudio Nascimento Silva

Portanto, esta foi uma vitória parcial apenas: a lei ainda tem de ser sancionada por Eduardo Paes. Precisamos nos manifestar com mensagens pedindo o veto.


Formulário de contato do blog de Eduardo Paes, aqui 
Twitter: @eduardopaes_
Ouvidoria da Prefeitura do RJ, aqui

* * *

Leia também:
Por uma educação sem homofobia, sobre o imbróglio do veto aos vídeos do Projeto Escola sem Homofobia, em 2011
Unesco dá parecer favorável à distribuição de material contra homofobia nas escolas
Lista dos vereadores que votaram pela aprovação da lei
Advogado membro da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB/RJ critica lei que proíbe materiais contra homofobia, aqui (dica do sempre atento amigo @wrighini)

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Atualização às 17h43:
ATO EDUCAR PARA A DIVERSIDADE | CONTRA A LEI QUE PROÍBE O COMBATE À HOMOFOBIA NAS ESCOLAS DO RIO!
CINELÂNDIA - 27 DE MARÇO - 15H

O projeto ainda precisa ser votado pela Câmara dos Vereadores em segunda discussão, que acontecerá nesta terça-feira, dia 27 de março, às 16h.

Venha. Junte-se. Mobilize seu grupo, seus amigos, sua igreja, sua universidade. Não dá mais para assistir parados à essa avalanche de facismo, preconceito e discriminação.

Escola é lugar de ensinar respeito, justiça, direitos!

Mais informações sobre o ato aqui.

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Atualização em 28/03/2012:
"Na tarde de ontem, deveria ter ocorrido a segunda votação, em caráter definitivo, mas não aconteceu em função de duas propostas de mudança ao texto original de Carlos Bolsonaro. Assim que elas forem avaliadas, o projeto volta a votação e, caso aprovado, será encaminhado ao executivo para que o prefeito Eduardo Paes o sancione – ou não, é que esperamos.

Mesmo que ainda não tenha sido aprovado, um projeto como esse preocupa apenas pela sua existência. A coisa fica ainda mais grave quando nos damos conta de que tem gente apoiando, e muita gente. A sensação que fica é a de um retrocesso medonho, em que vemos os ignorantes promovendo a ignorância para não sair de suas posições privilegiadas. E me parece no mínimo contraditório um projeto que promove a ignorância tratar exatamente da educação em uma cidade. Não faz o menor sentido."

(Fonte: Murilo Araújo em ótimo comentário no Vestiário, aqui)

Redescobrir a oração

Escultura: Tjep.

A oração é um exercício fundamental na busca pela qualidade de vida. Nas indicações que não podem faltar, especialmente para a vida cristã, estão a prática e o cultivo disciplinado da oração. É um exercício que tem força incomparável em relação às diversas abordagens de autoajuda, como livros e DVDs, muito comuns na atualidade.

A crise existencial contemporânea, em particular na cultura ocidental, precisa redescobrir o caminho da oração para uma vida de qualidade. Equivocado é o entendimento que pensa a oração como prática exclusiva de devotos. A oração guarda uma dimensão essencial da vida cristã. Cultivar essa prática é um segredo fundamental para reconquistar a inteireza da própria vida e fecundar o sentido que a sustenta.

É muito oportuno incluir entre as diversificadas opiniões, junto aos variados assuntos discutidos quotidianamente, o que significa e o que se pode alcançar pelo caminho da oração. Perdê-la como força e não adotá-la como prática diária é abrir mão de uma alavanca com força para mover mundos. A fé cristã, por meio da teologia, tem por tradição abordar a importância da oração ao analisar a sua estrutura fundamental, seus elementos constitutivos, suas formas e os modos de sua experiência. Trata-se de uma importante ciência e de uma prática rica para fecundar a fé.

A oração tem propriedades para qualificar a vida pessoal, familiar, social e comunitária. Muitos podem desconhecer, mas a oração pode ser um laço irrenunciável com o compromisso ético. É prática dos devotos, mas também um estímulo à cidadania. Ao contrário de ser fuga das dificuldades, é clarividência e sabedoria, tão necessários no enfrentamento dos problemas. Na verdade, a oração faz brotar uma fonte interior de decisões, baseadas em valores com força qualitativa.

A oração como prática e como inquestionável demanda, no entanto, passa, por razões socioculturais, por uma crise. Aliás, uma crise numa cultura ocidental que nunca foi radicalmente orante. O secularismo e a mentalidade racionalista se confrontam com aspectos importantes da vida oracional, como a intercessão e a contemplação. Diante desse cenário, é importante sublinhar: paga-se um preço muito alto quando se configura o caminho existencial distante da dimensão transcendente. O distanciamento, o desconhecimento e a tendência de banir o divino como referencial produzem vazios que atingem frontalmente a existência.

É longo o caminho para acertar a compreensão e fazer com que todos percebam o horizonte rico e indispensável da oração. Faz falta a clareza de que existem situações e problemas que a política, a ciência e a técnica não podem oferecer soluções, como o sentido da vida e a experiência de uma felicidade duradoura. A oração é caminho singular. É, pois, indispensável aprender a orar e cultivar a disciplina diária da oração. Tratar-se de um caminhar em direção às raízes e ao essencial. Nesse caminho está um remédio indispensável para o mundo atual, que proporciona mais fraternidade e experiências de solidariedade.

A lógica dominante da sociedade contemporânea está na contramão dessa busca. Os mecanismos que regem o consumismo e a autossuficiência humana provocam mortes. Sozinho, o progresso tecnológico, tão necessário e admirável, produz ambiguidades fatais e inúmeras contradições. Orar desperta uma consciência própria de autenticidade. Impulsiona à experiência humilde do próprio limite e inspira a conversão. É recomendação cristã determinante dos rumos da vida e de sua qualidade. A Igreja Católica tem verdadeiros tesouros, na forma de tratados, de estudos, de reflexões, e de indicações para o cultivo da oração, que remetem à origem do cristianismo, quando os próprios discípulos pediram a Jesus: “Ensina-nos a orar”. É uma tarefa missionária essencial na fé, uma aprendizagem necessária, um cultivo para novas respostas na qualificação pessoal e do tecido cultural sustentador da vida em sociedade.

- D. Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte
Reproduzido via Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (Portugal)

quinta-feira, 22 de março de 2012

É preciso escutar a música

Ilustração: Elisa Carareto

"É preciso escutar a música da vida, pois a grande maioria das pessoas só percebe as dissonâncias."

- La Fontaine (RT@andretrig)

Tuitadas de quinta

Imagem do dia, daqui

ABGLT faz campanha para incentivar alunos a denunciar homofobia
"A entidade recomenda os estudantes que registrem um boletim de ocôrrência em caso de agressão, liguem gratuitamente para o Disque 100, e ainda enviem a denúncia para presidencia@abglt.org.br, para que possa acompanhar os casos. Segundo a ABGLT, a campanha é motivada pelo aumento do número de casos de alunos vítimas de homofobia no ambiente escolar."

Resultados errados de exame HIV geram indenização
"A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça condenou o Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a pagar indenização de danos morais de R$ 15 mil a paciente que teve três exames sucessivos com resultado positivo para HIV, o que não era verdade. Na decisão, a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, acatou jurisprudência do STJ, que reconhece a existência de dano moral por emissão de resultado equivocado em exame de HIV."

Ricky Martin e família na Vanity Fair
"Atenção, galera! Um, dois e já: OOOWWWNNN... Nada jamais foi tão fofo quanto esta foto de Ricky Martin, seu marido Carlos e os pimpolhos Matteo e Valentino (filhos de Ricky com uma barriga emprestada, não de aluguel, como ele faz questão de frisar)."

Campanha publicitária pós-carnaval estimula jovem a fazer teste de aids
"O Ministério da Saúde iniciou na TV aberta a segunda parte da campanha de combate à aids, que começou antes do carnaval. A ideia agora é estimular o folião que teve relação sexual sem preservativo nos dias da festa do Rei Momo a procurar uma unidade de saúde para fazer o teste de aids."

A escravidão da aparência, o machismo invisível
"O trabalho de Marina Castañeda é extremamente importante. Nele ela investiga aspectos psicológicos do machismo. Uma das tarefas d@ psicólog@ é detectar certas formas de pensar e de sentir, pausas de comunicação, formas de relação, que costumam permanecer ocultas; são habituais e involuntárias."

Crianças do Candomblé dizem estar com leucemia para fugir da discriminação
"Ao longo de 20 anos, Stela Guedes Caputo acompanhou a vida de crianças ligadas ao candomblé. Descobriu que, para escapar do preconceito religioso, algumas chegavam a inventar doenças para justificar a cabeça raspada."

ONGs denunciam desmonte do programa brasileiro de Aids
"Estamos vivendo uma situação sem precedentes de desmantelamento do controle social da resposta à epidemia de HIV-Aids no Brasil. O sucesso da política brasileira sempre esteve pautado num trabalho conjunto entre Estado e sociedade civil organizada, que não apenas cobrava ações efetivas das autoridades – como foco nos direitos humanos – mas também era protagonista no desenho e implementação das políticas. Que não se enganem os céticos em relação ao papel e importância desses grupos: certamente a crise das associações que trabalham com o HIV e mesmo os grupos de pessoas vivendo com o HIV é a crise da resposta brasileira à epidemia."

A ditadura do presente
"'A crise provocada pelas finanças roubou-nos o futuro. Ela literalmente sepultou-o debaixo dos medos do presente. Cabe a nós retomá-lo'. Assim fala Marc Augé, um dos antropólogos mais célebres do mundo (...), em entrevista (...). Ele não tem a veemência nem a impetuosidade do tribuno, mas, por trás da sua reflexão pacata, percebe-se o rigor inflexível do iluminista. Que deixa ao mundo uma esperança: a de ser salvo pelas mulheres."

Cardeal Van Thuan. O bispo da esperança poderá ser beatificado
"Uma delegação vaticana do Pontifício Conselho 'Justiça e Paz' estará no Vietnã, de 23 de março a 9 de abril, para recolher testemunhos (necessários para a causa de beatificação) sobre a vida e a obra do cardeal Francis Xavier Nguyen Van Thuan, arcebispo vietnamita que passou 13 anos de seu episcopado na prisão, sendo 9 em isolamento. 'Os bispos, os fiéis, toda a Igreja no Vietnã(...) alimentam muitas esperanças em relação ao êxito no processo de beatificação do nosso amado cardeal Xavier Van Thuan. Ele foi uma pessoa especial, que viveu o Evangelho como único critério de sua vida'."

Um governo refém de autoridades religiosas

Imagem daqui. A propósito, você viu este vídeo?

“Não é de teses que o governo tornou-se refém, mas sim de autoridades religiosas que buscam imobilizá-lo por meio de chantagens. Em vez de resistir, o governo deixou-se enredar. Ora, contra a chantagem só há uma saída: resistir ao chantagista trazendo-o para a luz do dia, isto é, obrigando-o ao debate público sobre suas propostas”. E questiona: “Se a maioria da população rejeita a política e aceita a religião, por que o governo seria diferente?” Em seu ponto de vista, Dilma Rousseff possui como meta a integração total do Brasil com o sistema capitalista mundial. “Quem paga o custo desse crescimento é o sistema de vida do Planeta – mas ele não tem voz para protestar”. Exceto oportunidades bastante raras, não existe mais um debate das políticas do governo e do Estado. “A política foi reduzida à disputa por cargos no governo e ao processo eleitoral”, sentencia, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Pedro Ribeiro de Oliveira é doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Atualmente é professor do PPG em Ciências da Religião da PUC-Minas. Dentre suas obras, destacamos Fé e Política: fundamentos (Aparecida: Ideias & Letras, 2004) e Religião e dominação de classe (Petrópolis: Vozes, 1985).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – A partir da conjuntura política nacional atual, como o senhor percebe a autonomia do Estado em relação à religião?
Pedro Ribeiro de Oliveira – Vamos começar pela apreciação do rumo político dos governos Lula e Dilma, porque isso ajuda a esclarecer a relevância que a religião adquiriu no cenário político brasileiro. Tal como Lula, Dilma tem como meta a plena integração do Brasil no sistema capitalista mundial, não mais pelo alinhamento aos interesses dos EUA – como foi até Fernando Henrique Cardoso – e sim pela abertura à China e aos países do “grande Sul”. Numa conjuntura econômica favorável, essa política resultou no crescimento do PIB e na distribuição da renda (não da riqueza!). Assim, o atual governo pode satisfazer praticamente todas as classes sociais: trabalhadores, aposentados e pensionistas galgam um patamar mais elevado de consumo, banqueiros têm lucros nunca vistos, empresários do agronegócio e da mineração são favorecidos, servidores públicos recuperam o poder aquisitivo. Enfim, praticamente todos têm a sensação de serem beneficiados pela atual política macroeconômica. Quem paga o custo desse crescimento é o sistema de vida do Planeta – mas ele não tem voz para protestar.

Diante desse amplo apoio na sociedade, só quebrado pelas manifestações contrárias de quem se preocupa com a vida do Planeta, o governo Dilma aprofundou o processo de despolitização iniciado por Lula. Salvo raros momentos, não se debatem mais as políticas do governo e do Estado. A política foi reduzida à disputa por cargos no governo e ao processo eleitoral. Esse é pano de fundo para minhas respostas à entrevista.

IHU On-Line – De forma geral, qual a importância da religião no cenário político nacional atual? Como a presidente Dilma está lidando com este aspecto?
Pedro Ribeiro de Oliveira – Quando os partidos políticos abdicam de sua função própria de criticar e de apresentar propostas de políticas públicas e se contentam em disputar cargos e benesses, outras entidades passam a ocupar aquela função. É o caso das igrejas que, no vazio deixado pelos partidos, ganham força política. E a presidente Dilma está mostrando ter pouca habilidade para lidar com Igrejas que fazem política, especialmente se fazem uma política mesquinha. Talvez isso se deva a seu passado militante em autênticos partidos políticos, somado à pouca participação em alguma igreja. Dificilmente caberia em sua teoria esta realidade de igrejas em disputa por benesses políticas.

IHU On-Line – Como percebe que uma linguagem com fundo religioso sobe cada vez mais ao palco de um Estado que se quer laico? Não vê uma contradição aqui?
Pedro Ribeiro de Oliveira – Não é bem uma contradição, mas uma concessão ao ambiente sociocultural brasileiro: o governo dança conforme a música. Se a maioria da população rejeita a política e aceita a religião, por que o governo seria diferente? Ele deixa nos bastidores sua meta política de plena inserção no sistema capitalista mundial e traz para o palco midiático as propostas ao gosto das massas, sejam elas de fundo religioso ou tratem de futebol, segurança, habitação, ensino e outras.

IHU On-Line – O governo Dilma estaria sendo refém de teses conservadoras capitaneadas por setores das igrejas pentecostais, neopentecostais e católica? Religião interferindo demais na política não força um conservadorismo perigoso?
Pedro Ribeiro de Oliveira – Não é de teses que o governo tornou-se refém, mas sim de autoridades religiosas que buscam imobilizá-lo por meio de chantagens. Em vez de resistir, o governo deixou-se enredar. Ora, contra a chantagem só há uma saída: resistir ao chantagista trazendo-o para a luz do dia, isto é, obrigando-o ao debate público sobre suas propostas. Se o governo abrisse um amplo debate com a sociedade – penso no Parlamento, nos Conselhos de Cidadania, em universidades e em parcerias com ONGs – e lhes desse divulgação midiática, constataria que não há tanto consenso nas igrejas como elas deixam transparecer. Refiro-me aqui a oposição das igrejas (ou, mais precisamente, de algumas igrejas) à descriminalização do aborto e da eutanásia, à distribuição de preservativos, à educação sexual nas escolas, ao combate à homofobia, e sua insistência no ensino confessional nas escolas públicas. Na ausência de um debate, contudo, a posição da autoridade eclesiástica – pastores, padres e bispos – emerge como a única.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a nomeação do senador Marcello Crivella (PRB-RJ) para o Ministério da Pesca?
Pedro Ribeiro de Oliveira – Crivella sempre defendeu no Senado os interesses corporativos de igrejas neopentecostais, como a regulamentação da profissão de teólogo. Alçado agora à posição de ministro, ele terá acesso mais direto à presidente para fazer suas reivindicações e assim atender a suas bases. Mas é preciso ter presente que seu ministério não é sem importância, porque a pesca é um dos principais fatores de extinção de espécies aquáticas e falta uma política pública bem equacionada para o setor. Se ele tiver um comportamento realmente republicano e olhar em primeiro lugar os interesses nacionais e do sistema de vida do Planeta, poderá trazer uma grande contribuição, mas muito me surpreenderia se isso acontecer.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta a posição da presidente Dilma em recuar e suspender a distribuição do kit anti-homofobia nas escolas? O que esse gesto sinaliza sob a condução da questão da homossexualidade no governo?
Pedro Ribeiro de Oliveira – Há no caso uma questão eleitoral: a candidatura de Fernando Haddad em São Paulo, que não pode desperdiçar nenhum voto sob pena de perder a eleição. Nessa caça aos votos dos evangélicos a concorrência é feroz, e, sendo em geral um eleitorado pouco politizado, a argumentação política tem menos força do que uma argumentação religiosa ou moralista. Lamento ver o governo Dilma abrir mão de propostas políticas inovadoras por medo de perder uma eleição municipal.

IHU On-Line – O senhor percebe um enfraquecimento da influência dos setores progressistas da Igreja Católica no governo? Os fundamentos da Teologia da Libertação se perderam no governo Dilma?
Pedro Ribeiro de Oliveira – Não há enfraquecimento porque o único momento em que eles tiveram alguma influência na presidência da República foi nos dois primeiros anos do governo Lula. Na medida em que o PT conduzido por Lula se transformou em partido do governo e consolidou sua aliança com o PMDB e outros grupos para eleger Dilma, foi-se acabando o espaço para um projeto de libertação. É só lembrar o abandono da reforma agrária e dos Direitos dos Povos Indígenas, o desrespeito à ecologia e à biodiversidade, o assistencialismo das políticas sociais e a despolitização geral. Hoje, a ideia-força da libertação está fora do governo – e também da igreja. Seu espaço é apenas a sociedade, e, ainda assim, somente ali onde o povo se organiza com autonomia.

Fonte: IHU On-Line

Igreja do Concílio e além

Imagem: Vaticano

Fala-se de "Vaticano III" e até mesmo de "Jerusalém II". Mas, se a meta é até mesmo ir além, será preciso, contudo, passar pelo Concílio Vaticano II.

A análise é do padre e jornalista italiano Vittorio Cristelli, publicada na revista Vita Trentina, da diocese de Trento, na Itália, 11-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


É típico dos aniversários introduzir a discussão sobre o que representou o evento que se celebra e destacar os aspectos ignorados ou ainda não realizados. O ano de 2012 cai exatamente a 50 anos da abertura do Concílio Vaticano II e deveria ser, portanto, um ano em que esse Concílio é revisitado. Já se anunciam estudos maciços nesse sentido, principalmente na área latino-americana da Teologia da Libertação.

Estas são as novidades fundamentais desencadeadas e ainda não plenamente realizadas do Concílio: de uma Igreja centralista a uma Igreja corresponsável e sinodal, respeitosa pelas Igrejas locais; de uma Igreja identificada com a hierarquia a uma Igreja "povo de Deus", com diversos carismas; de uma Igreja triunfalista que se autoglorifica a uma Igreja que caminha na história; de uma Igreja dominadora mãe e mestra a uma Igreja a serviço de todos e particularmente dos pobres; de uma Igreja comprometida com o poder a uma Igreja solidária com os mais fracos; de uma Igreja arca da salvação a uma Igreja sacramento de salvação, em diálogo com as outras Igrejas e as outras religiões da humanidade.

À parte do fenômeno cismático dos da lefebvrianos, nascidos e persistentes na rejeição total do Concílio, é preciso dizer que houve e ainda há resistências na vida concreta das visões de Igreja que surgiram do Concílio. A mais evidente, a da valorização dos leigos, aos quais o Concílio deu a licença de maturidade e reconheceu a tarefa específica de protagonistas ao tratar as coisas temporais (leia-se: economia, administração, política), considerando-as como lugares da sua santificação.

Atrasos e resistências mais de uma vez registrados e denunciados. Se o Papa João XXIII, inventor do Concílio, falava de "primavera da Igreja", o grande teólogo Karl Rahner, em 1982, 20º aniversário do Concílio, intitulava um discurso crítico seu de "O inverno da Igreja". Mas ouçam o que dizia o cardeal Franz König aos leigos da sua aquidiocese de Viena, em pleno Concílio:

"Quando tiverem algo a dizer a respeito da Igreja, não esperem pelo bispo. Não esperem uma palavra de Roma. Falem quando acharem que devem fazê-lo; pressionem quando devem fazê-lo. Todas as vezes que tiverem oportunidade, informem o mundo e os católicos. Além disso, digam também tudo o que o povo e os fiéis esperam da Igreja. Desse modo, esse processo que nasceu na esperança não cairá na desilusão, mas terá uma realização magnífica".

Mas há também um "além" do Concílio, provocado e desejado hoje pela mudança radical que se verificou no mundo. A globalização, com as migrações associadas, trouxe para dentro das próprias comunidades eclesiais todo o mundo e, com ele, todas as religiões. É assim, por exemplo, que hoje não se trata mais só da relação com as outras Igrejas cristãs e o consequente ecumenismo, mas da relação com todas as religiões, aquilo que com uma palavra que tenta se afirmar se chama de macroecumenismo.

Motivo pelo qual não basta nem mesmo o olhar sobre a Igreja. Paulo VI, com a intuição que lhe era própria, já havia previsto essa passagem. Se, durante o Concílio, ele sintetizava as problemáticas na pergunta "Igreja, o que dizes de ti mesma?", alguns anos depois, em uma Semana Social francesa, ele fazia uma outra pergunta: "Igreja, o que dizes de Deus?". E Karl Rahner também tinha chegado a isso, já que pôde escrever: "O futuro não interpelará a Igreja sobre a estrutura litúrgica mais precisa e mais bonita, nem sobre as doutrinas teológicas mais polêmicas que distinguem a doutrina cristã da dos cristãos não católicos, e nem sobre o regime da Cúria Romana. Pedirá que a Igreja testemunhe a proximidade do mistério inefável que chamamos de Deus".

Tem-se falado várias vezes, aqui e acolá, de um novo Concílio. Ele também é invocado pelo teólogo latino-americano Victor Codina, acrescentando provocativamente que ele não seja chamado de "Vaticano III", mas sim de "Jerusalém II". Mas preciso dizer uma coisa: se a meta é até mesmo ir além, será preciso, contudo, passar pelo Concílio Vaticano II.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Seis princípios da luta não-violenta


1. Não usar nem ameaçar violência.

2. Ater-se sempre à verdade: verdade dos fatos, verdade moral, veracidade, transparência ou publicidade, não ação oculta, não criar insegurança no adversário.

3. Estar disposto aos máximos sacrifícios pelos objetivos essenciais: "A doutrina da violência diz respeito apenas à ofensa feita por uma pessoa contra uma outra. Sofrer a ofensa em sua própria pessoa, ao contrário, faz parte da essência da não violência e constitui a alternativa à violência contra o próximo".

4. Compromisso constante com o programa construtivo.

5. Dispor-se ao compromisso sobre os objetivos não essenciais.

6. Respeitar a gratuidade dos meios.

Fonte: IHU

Tuitadas de quarta


Vídeo do dia: Laerte no programa Provocações, da TV Cultura

A Call to Cardinal Dolan to Stop Endangering LGBT Youth
"Cardinal Dolan, I write to you as the director of the Ali Forney Center, the nation's largest organization dedicated to homeless LGBT youth. I am writing to you on behalf of the hundreds of thousands of LGBT youths who have been driven from their homes by parents unwilling or unable to accept their own children because they are gay. And I write to you as a member of the Archdiocese of New York who is deeply ashamed by the ways that his bishop contributes to the abuse and harm suffered by these youths."

Leia também: Carta aberta do Fórum Europeu LGBT ao Papa Bento XVI

Congresso Nacional realiza até culto religioso enquando direitos gays ficam de escanteio
"O plenário da Câmara dos Deputados virou, literalmente, uma igreja. A deputada (também cantora evangélica Lauriete) cantou um hino tradicional, conhecido de todos os evangélicos, de todas as vertentes deste país: 'Grandioso és Tu'. Gritos de 'aleluias' e 'glórias a Deus' podem ser ouvidos no vídeo. Deputados evangélicos com suas mãos levantadas (postura de louvor a Deus dentro do templo) podem ser vistos, além da nomeação e saudação aos caciques desta denominação; estavam todos lá, celebrando na casa do povo, na casa que deve guardar a Constituição que reza que o nosso Estado é laico."

Veja o vídeo aqui

Excelente revisão histórica e conceitual de Rita Colaço: "Orientação sexual e Direitos Humanos"
"O Brasil, na qualidade de integrante desses organismos internacionais, é signatário de tratados e acordos que o obrigam a promover a superação desse paradigma discriminatório, em busca da construção de uma cultura inclusiva, fraterna e respeitosa. Também a Constituição da República igualmente determina ao Estado brasileiro a observância desses valores – não discriminação, igualdade, dignidade."

Dilma e gays: o ataque de Luiz Mott, uma retrospectiva do atual desastre e os recursos de que dispomos
"Interesses políticos, no entanto, inibem ações do Estado nesse sentido. Talvez a única forma de lograr êxito, portanto, seja buscar pressão internacional. Como no caso da pressão de organismos multilaterais para que o Brasil puna os crimes da ditadura militar, Luiz Mott e outros ativistas fariam melhor se investissem nesses organismos como meio de impedir que o governo Dilma caia nos braços dos ultraconservadores."

European Court of Human Rights says marriage not a universal human right
"Same-sex marriages are not a human right, European judges have ruled. Their decision shreds the claim by ministers that gay marriage is a universal human right and that same-sex couples have a right to marry because their mutual commitment is just as strong as that of husbands and wives."

EUA podem rever ajuda à Libéria devido à defesa da criminalização da homossexualidade por sua presidente
"State Department spokeswoman Victoria Nuland said the U.S. stood by its policy of aggressively promoting gay rights. But asked about Sirleaf's statements, (...) Nuland said the U.S. would be inquiring with Liberian officials to 'find out whether the reporting is accurate and express some surprise and concern.'"

RT@dmauromorelli Vergonha e dor por crimes praticados por cristãos da Igreja Católica e outras Igrejas e Religiões. Mas dizer que "a Igreja"… menos, gente.

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Homofobia nas Escolas

Cartaz da campanha da rede portuguesa Ex Aequo 
sobre homofobia na escola. 


Luiz Henrique Coletto, um dos editores do Bule Voador, introduz o texto abaixo explicando que, em novembro de 2011, "ocorreu na Câmara dos Deputados o Seminário Plano Nacional de Educação – mobilização nacional por uma educação sem homofobia, que foi promovido pelas comissões de Legislação Participativa, de Direitos Humanos e Minorias e de Educação e Cultura. O evento tinha o objetivo de pressionar por uma abordagem mais ampla e diversificada do tema do que aquela que se pretende com a nova versão do PNE – a observação principal do movimento LGBT é a de que as próprias Conferências Nacionais de Educação haviam previsto bem mais ações do que a única que consta na nova versão do Plano."

Nesse seminário, a antropóloga Debora Diniz fez uma reflexão sobre a homofobia "abordando, basicamente, dois eixos", resume Coletto: "um sobre a definição da homofobia que observa suas implicações práticas – naquilo que a autora vai diferenciar por vítimas da homofobia e refugiados da homofobia; e outro sobre o efeito linguístico e ideológico que a adoção do termo
bullying encobre em relação à homofobia nas escolas. Este segundo ponto é, notadamente, o mais interessante porque traz uma perspectiva relativamente nova sobre a questão ao desnaturalizar o uso pouco reflexivo que temos feito do termo bullying." 

(Fonte: Bule Voador)



Obrigada pelo convite para participar de tão importante evento para a educação e a igualdade no Brasil. Em particular agradeço a Toni Reis – parte da minha militância pela igualdade sexual é inspirada pelo trabalho que ele realiza. Dada a extensão de apresentações nesta tarde, minha exposição será breve. Tocarei em dois conceitos que considero centrais: i)o que é homofobia e como ela viola a igualdade na escola; ii) por que devemos falar em homofobia e não em bullying nas escolas.

(i) O que é homofobia?
Homofobia é uma prática discriminatória que falsamente pressupõe a superioridade da heterossexualidade a outros regimes e práticas sexuais. Homofobia e heteronormatividade, isto é, a hegemonia heterossexual à vida social, se sobrepõem, apesar de ser possível traçar fronteiras políticas entre os conceitos. A homofobia se expressa pela violência, pela injúria, pela opressão. Falamos em vítimas da homofobia. Queria demarcar a violência na homofobia: a homofobia sempre deixa marcas, sejam as feridas no corpo, o cadáver ou as barreiras no reconhecimento. Há um vocabulário de conflito armado sendo agora apropriado pelos movimentos LGBT: “ataques homofóbicos”, “crimes homofóbicos”, “luta pela igualdade”, “desaparecimento de pessoas”, etc. Sim, ao mesmo tempo em que é um vocabulário político de denúncia, precisamos estranhá-lo pelo que nos chama a atenção – estamos em um conflito armado? Só há dois destinos aos fora da norma heterossexual: serem vítimas da violência homofóbica ou serem refugiados de sua patrulha moral. Grande parte de nossos refugiados da heteronormatividade estão nas escolas, descobrindo-se frente a um ambiente homofóbico.

Não há fundamento moral ou ético possível e aceitável para a homofobia.

A homofobia é um dos dispositivos que mantém a ordem heteronormativa na vida social – e a escola é um dos espaços prioritários para a garantia dessa ordem. É lá que se promovem os valores compartilhados à cidadania. A homofobia viola a igualdade, impede o reconhecimento, autoriza práticas de violação de direitos humanos. Não há fundamento moral ou ético possível e aceitável para a homofobia. Um homófobo precisa ser silenciado e suas práticas reprimidas. Por isso, a criminalização da homofobia é tão eloquente para a igualdade – o que me parece um paradoxo a quem acredita na educação como um dos principais sistemas de promoção da igualdade. E aqui quero ser clara: não há sistema de crença que legitime a homofobia, por isso não há como se apelar à expressão religiosa para o discurso homofóbico como expressão da liberdade de crença. Religião não autoriza ou legitima o discurso do ódio. E menos ainda nas escolas, onde ensino religioso é ainda pouco regulamentado pelo MEC. Essa afirmação simples traz conseqüências imediatas para as práticas de convivência e pedagógicas das escolas. Professoras, pedagogias e convivências devem se subordinar à igualdade sexual como um valor. Os livros – mesmo os de religião – devem reconhecer a igualdade em matéria sexual e afugentar expressões homofóbicas de seus textos e vozes.

Aqui chegamos no outro lado de um esforço à criminalização da homofobia e o que toca diretamente a educação e a escola. Tenho dúvidas se uma lei que reprima com a força do Estado a homofobia irá mudar comportamentos e valores. Talvez os iniba, o que já é importante para o direito à vida das vítimas da homofobia. Mas para os refugiados da homofobia não é suficiente. Por isso, a escola é um espaço tão prioritário para ações duradouras de promoção da igualdade. A escola mira o futuro, além de atuar no presente. O Direito Penal persegue o passado nos homófobos. É na escola que nosso principal esforço para a igualdade sexual precisa estar. Mas não é simples: os homófobos podem ser os professores, os diretores das escolas, os pais das crianças. A resistência homofóbica e heteronormativa ronda as ações de igualdade sexual. Vejam a controvérsia – agora parece resolvida – dos vídeos educativos sobre sexualidade, os kit anti-homofobia do MEC. Simplesmente romper o silêncio já parece insuportável para a moral heteronormativa que se mantém por um braço violento – a homofobia – e por um braço opressor silencioso – a hetenormatividade compulsória que falsamente supõe que o acoplamento pênis-vagina é o destino da reprodução social e biológica da humanidade.

(ii) Homofobia e não bullying!
Bullying é um neologismo com origem na língua inglesa que diz algo como “provocação”. A provocação entre crianças é parte de uma socialização naturalizada – se provoca para se reconhecer os limites e se definir frente ao outro como um espelho. Mas há outra raiz no conceito de bullying: quem provoca e agride é o “valentão”. Há desigualdade de força e de potência no sujeito que atua pelo bullying. O ator do bullying é alguém que sabe que tem força – e aqui é força física. Ele atua sozinho ou em grupo. Alguns dizem que o bullying sempre existiu. Sim, me lembro do meu tempo de escola – sempre havia provocações contra os gordinhos, as meninas vesgas ou as crianças com deficiência. Me lembro também do sofrimento dessas crianças. Em geral, eram crianças solitárias. Tento imaginar as consequências dessas provocações injustas para os adultos de hoje. Elas foram refugiadas da fúria contra a diferença marcada no corpo. Elas são sobreviventes do bullying escolar, de um tempo em que o neologismo não nos socorria para expressar a indignação pela provocação injusta.

Houve algo de novo para precisarmos de um neologismo para falar dos novos acontecimentos: a sexualidade na infância e na adolescência passou a estar na agenda política e educacional. Crianças e adolescentes têm sexo e sexualidade.

Aqui está a chave do bullying: é uma violência contra o corpo fora da norma. Vejam que não falo em normal, pois norma e normal se confundem para a imposição das regras sob o corpo. O corpo que foge da regra – seja nos olhos da menina vesga, nas pernas do menino cadeirante, ou no cabelo da menina negra – é matéria suficiente para ação do indivíduo ou do grupo provocador. Por isso, estranho o uso do neologismo de bullying para algo tão antigo e persistente ao universo escolar, e com tantas ramificações na discriminação. A discriminação pelo corpo acompanhou a socialização de todos nós nesta sala e acompanha a vida de todas as crianças. Vivemos em uma ordem social que discrimina e oprime a diferença no corpo. A minha descrição da persistência não significa que devemos naturalizá-la: ao contrário, é uma prática perversa, injusta e imoral. Precisamos falar dela e rompê-la exemplarmente. Mas houve algo de novo para precisarmos de um neologismo para falar dos novos acontecimentos: a sexualidade na infância e na adolescência passou a estar na agenda política e educacional. Crianças e adolescentes têm sexo e sexualidade.

Temos um nome para o bullying com fundamento na cor da pele: racismo. Por isso, sugiro manter a mesma potência no campo sexual: o bullying sexual tem um nome, homofobia.

Bullying nada mais é que um neologismo puritano e burguês – um vocábulo heteronormativo – para falar da provocação, da discriminação aos fora da norma heterossexual. Quem são as vítimas do bullying midiatizadas nos últimos tempos? O menino que se tranveste, a menina que gosta de outras meninas, o transexual que não sabe que banheiro usar na escola. Com raras exceções de uma política inclusiva à violência corporal, raramente ouvi falar em bullying contra as crianças obesas ou com impedimentos corporais. Quando os gordinhos aparecem, são como um apêndice da diversidade no bullying. O alvo são os fora da norma heterossexual. Quando o tema é a cor da pele, não falamos em bullying. Temos um nome para o bullying com fundamento na cor da pele: racismo. Por isso, sugiro manter a mesma potência no campo sexual: o bullying sexual tem um nome, homofobia.

O bullying é um neologismo paradoxal. Ao mesmo tempo potente, pois nos permitiu entrar na escola e descrever algo silencioso: a homofobia nas práticas de provocação entre crianças ou entre professores e crianças. Mas também esconde seu próprio fundamento na sexualidade: retiramos a sexualidade do bullying, não falamos em homofobia. A naturalização do bullying como algo comum e permanente à infância e à escola esconde sua matriz heternormativa. O bullying não é espontâneo nas crianças, não pode ser natural à socialização das crianças. A origem do bullying que nos interessa hoje é a homofobia, um conceito poderoso e que precisa ser potencializado na escola.

O neologismo bullying é palatável às escolas, às famílias, à moral heterossexual. Não falamos em crianças e adolescentes e suas práticas sexuais fora da norma. Falamos em “provocações” e protegidas por um neologismo que a distância lingüística não nos provoca diretamente. Sentimos diferentemente, como se fosse, falsamente, um novo fenômeno. Não é. A homofobia está na escola, assim como na Avenida Paulista. O bullying na escola é uma expressão primária e permanente da homofobia em nossa vida social. Por isso, minha principal recomendação política a esta audiência pública é que reconheçamos a força política do conceito de homofobia. Não falamos de bullying apenas, mas de crianças e adolescentes refugiado pela fúria homofóbica, que precisamos proteger para que não se transformem em vítimas da homofobia no futuro ou mesmo na escola.

- Debora Diniz
Antropóloga, Professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Apresentação na Audiência Pública Homofobia nas Escolas - Câmara dos Deputados, novembro de 2011.
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