"O êxtase de Santa Teresa", Gian Lorenzo Bernini (1645-1652)
Para se entender a mística, é preciso partir da antropologia clássica e cristã: “Não bipartida em corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito”. Só assim podemos entendê-la como “experiência, experiência do espírito”, como “uma contínua e constante realidade de vida espiritual, que não consiste em ‘eventos’ particulares”.
Por isso, defende Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa, embora haja “modos de se relacionar com o divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher com relação aos de um homem”, no que concerne ao espírito, não há diferença de sexo, “como também não há distinções de caráter cultural, social, ambiental: ele é universal”. E brinca: “Falar de mística feminina tem tanto sentido como falar de matemática feminina”.
Contudo, explica, “devemos às mulheres uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da mística, muito mais significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não tinham acesso à instrução”. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Vannini comenta as experiências místicas de Angela de Foligno e de Marguerite Porete, cujas palavras, afirma, “falam não como palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade”.
Marco Vannini é um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa. Editou as obras de grandes místicos: Eckhart, Angelus Silesius, Sebastian Frank, Valentin Weigel, Marguerite Porete, Jean Gerson, François de Fénelon etc. Publicou inúmeros estudos, tais como: La morte dell’anima. Dalla mistica alla psicologia (Ed. Le Lettere, 2004); Storia della mistica occidentale (Ed. Mondadori, 2005); Mistica e filosofia (Ed. Le Lettere, 2007); La mistica delle grande religioni (Ed. Le Lettere, 2010); Prego Dio che mi liberi da Dio (Ed. Bompiani, 2010), dentre outras. Em português, foi traduzida a sua Introdução à mística (Edições Loyola, 2005).
Confira a entrevista, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.
IHU On-Line – “Êxtase, evento, experiência”: o que é mística para o senhor?
Marco Vannini – Sobretudo experiência, experiência do espírito. Não se entende o que é a mística se não se tem bem clara a antropologia clássica e cristã – não bipartida em corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito. Enquanto o elemento psíquico está todo submetido ao determinismo espaço-temporal e não conhece liberdade nem beatitude, onde está o espírito, ali há liberdade, como diz o Apóstolo (ubi spiritus domini, ibi libertas), e ali também há beatitude. Sob esse perfil, portanto, também se pode falar de “êxtase” na e para a mística, onde êxtase não significa, de fato, presença de visões extraordinárias ou de fenômenos excepcionais, mas sim, etimologicamente, a “saída” da condição do psiquismo, ou seja, do particular do pequeno eu, com todos os seus laços, e o abrir-se à dimensão do universal, onde não há mais oposição entre eu e o mundo, e nem entre eu e Deus.
O fato é que hoje, com frequência, não se sabe mais o que significa concreta e realmente espírito, enquanto profunda unidade de inteligência plenamente desenvolvida e de amor igual e plenamente estendido, sem objeto, “sem porquê” – os dois olhos da alma que, juntos, fazem o olhar “simples”, para seguir precisamente a linguagem de Marguerite Porete.
A palavra “evento” me convence menos, porque faz pensar em algo raro, casual e não comum, enquanto me parece que, ao invés, mística deva significar uma contínua e constante realidade de vida espiritual, que não consiste em “eventos” particulares.
IHU On-Line – Podemos falar de uma “mística feminina”? Quais seriam as suas contribuições à experiência mística em geral?
Marco Vannini – A meu ver, pode-se falar de mística feminina somente em um sentido redutivo, não essencial. Explico: enquanto corpo e psique da mulher são diversos – pelo menos em parte – dos do homem, é evidente que há modos de se relacionar com o divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher com relação aos de um homem. Mas, no que concerne ao espírito, ele não tem sexo – em Cristo, não há homem nem mulher, escreve o Apóstolo em Gálatas 3, 28 –, como também não há distinções de caráter cultural, social, ambiental: isso é universal. Falar de mística feminina é, portanto, um fruto do nosso tempo, no qual a emancipação feminina, o feminismo, a historiografia de “gênero”, de um campo no qual é legítima, transbordou para fora dos limites. Falar de mística feminina tem tanto sentido como falar de matemática feminina. Por isso a mística de todos os tempos e de todas as culturas – de Plotino aos nossos dias, de Eckhart a Sankara etc. – é quase idêntica e, por isso, as obras das grandes mulheres místicas não têm características “femininas”. Precisamente o caso do Espelho das almas simples, de Marguerite Porete, é emblemático: antes que Romana Guarnieri descobrisse a autora, pensou-se durante séculos que fosse obra de um homem, e como tal foi publicada em inglês e foi lida, por exemplo, por Simone Weil.
Quando se vai ao específico “feminino”, o espiritual recai no psicológico, e então temos os exemplos das mulheres que acreditavam estar grávidas de Jesus, sonhavam em aleitar Jesus menino etc., onde o místico recai no patológico e pode aparecer – como talvez o seja, de fato, nesses casos – como o substituto de uma vida plenamente vivida. Não por acaso aqueles homens – mas, sobretudo, aquelas mulheres, porque quase sempre é delas que se trata – que tiveram experiência de matrimônio (por exemplo, santa Catarina de Gênova ou Madame Guyon, mas também Angela de Foligno), quase nunca utilizam o simbolismo e os termos “esponsais” da mística chamada “nupcial”, para não misturar corpo e alma com espírito, que, como ensina ainda o Apóstolo, é o seu oposto.
IHU On-Line – Em sua opinião, que figuras históricas mais se destacam na abordagem mística feminina a Deus e ao Mistério? Por quê?
Marco Vannini – Lembrando que, como recém disse, não compartilho muito a ideia de que haja uma “abordagem mística feminina” essencialmente diferente da masculina, devo dizer com a mesma franqueza que devemos às mulheres uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da mística, muito mais significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não tinham acesso à instrução. E isso é extremamente indicativo pelo fato de que a experiência espiritual, na sua universalidade, não depende das culturas. Sem querer deixar de lado muitas outras figuras importantíssimas, penso que Marguerite Porete, na Idade Média, santa Catarina de Gênova, na época moderna, e Simone Weil, no presente, são expoentes da experiência mística. Dei como subtítulo Da Ilíada a Simone Weil à minha Storia della mistica occidentale, precisamente para sublinhar o relevo que atribuo a uma mulher na história da mística.
IHU On-Line – Como a mística – e sobretudo a cristã – foi entendida, discutida e estudada ao longo do tempo? Quais seriam os grandes pontos de referência históricos do conceito de mística?
Marco Vannini – O discurso seria longo. Indicarei apenas um momento realmente fundamental: o fim do século XVII, quando a condenação de Miguel de Molinos, dos chamados “quietistas”, e depois também da obra de Fénelon, Explications des maximes des saintes sur la vie intérieure [Explicação das máximas dos santos sobre a vida interior] (1689), marcou realmente aquela que os historiadores da espiritualidade franceses chamam de la déroute de la mystique, a derrota da mística. De fato, junto com Fénelon e os outros condenados, eram também condenadas as teses mais relevantes da mística cristã: a doutrina do “puro amor”, a presença de Deus no “fundo da alma”, a “indiferença”, ou seja, o completo distanciamento.
A partir de então foi reservado à mística somente um espaço marginal, reservado àqueles poucos favorecidos pelas graças (no plural: não pela graça) divinas e que, por isso, se exprimia em visões sobrenaturais, experiências estáticas particulares etc. Portanto, não algo que seja universal, pertencente a todo homem (ou mulher, evidentemente), mas só particular, excepcional. Esse é o significado que a palavra mística assumiu na época contemporânea e que, por isso, de fato, a coloca em oposição com a ciência, com a lógica, com a razão. Infelizmente, ainda não saímos desse modo de pensar a mística, pelo menos em nível comum.
Tenha-se presente que a própria palavra “mística” como substantivo entrou no uso comum somente muito tarde, pelo século XVI: antes, era somente adjetivo, em geral de “teologia” ou de “interpretação”, relativamente à Sagrada Escritura: assim, por exemplo, o maior místico do Ocidente, Mestre Eckhart, não sabia, de fato, que era um “místico”! A Antiguidade e a Idade Média cristã falavam antes de “contemplação” – uma palavra que mantinha intacto todo o sentido originário do filosofar como bios teoretikós, vida contemplativa, vida de conhecimento voltada ao Uno, no afastamento dos laços e das paixões – a única capaz de dar beatitude. Por isso paradoxalmente se poderia dizer que, no próprio uso da palavra e do conceito de “mística”, já está implícita essa separação daquilo que é comum, universal e, portanto, próprio de cada homem e de cada mulher, o que condena a mística à marginalização e à incompreensão.
IHU On-Line – Como o senhor vê a tensão entre mística feminina e instituição eclesiástica no decorrer da história? Quais foram os fatos históricos mais marcantes, em sua opinião?
Marco Vannini – Não resta dúvida de que por séculos a instituição eclesiástica suspeitou das mulheres que, de algum modo, traziam uma voz nova ou assumiam um papel magisterial. A história da mística está cheia de episódios de mulheres incriminadas ou talvez condenadas por esse motivo: o caso de Marguerite Porete, queimada como herege pelo seu livro Espelho das almas simples, que depois foi publicado, nos nossos dias, no Corpus Christianorum. Continuatio medievalis. Ou seja, entre os grandes clássicos da espiritualidade cristã, é verdadeiramente exemplar.
Mas não sublinharei muito esse fato como “feminino”: na realidade, a instituição eclesiástica sempre suspeitou da mística enquanto tal, na medida em que o místico tende a superar a mediação, coloca-se “só para o só”, como diz Plotino, indo além de sacerdotes, sacramentos, Escrituras etc. O Mestre Eckhart era um homem, um dominicano, no topo da sua Ordem e da universidade, mas mesmo assim foi processado e condenado. Também não devemos nos esquecer de que sempre houve homens da Igreja que se puseram à escuta de mulheres e que aprenderam com elas: o bispo Fénelon com Madame Guyon, por exemplo. O próprio Eckhart, que esteve presente em Paris no processo contra Marguerite Porete, utiliza amplamente a sua obra, embora não pudesse citar a sua autora, queimada como herege.
IHU On-Line – Em linhas gerais, quem foi Angela de Foligno? O que mais caracteriza a sua mística e espiritualidade?
Marco Vannini – Angela de Foligno foi uma mulher que viveu intensamente a experiência da separação, do despojamento interior – do qual esse exterior, a nudez, é manifestação sensível – e da perda do eu, até a identificação com o Tu divino, na específica forma do Cristo: “Tu és eu, e eu sou tu”, escreve ela, de fato, no Memorial. O central da sua mística me parece ser a consciência alcançada de que “tudo está bem”, até à paradoxal afirmação de que Deus está presente “em toda criatura, em qualquer coisa que exista, seja diabo, seja anjo bom, seja no inferno ou no paraíso, seja no adultério e no homicídio, seja nas obras virtuosas, em qualquer coisa provida de ser, mesmo que seja bela ou se é torpe”.
IHU On-Line – Que imagem de Deus ou do Mistério Angela de Foligno nos deixou em seu Liber?
Marco Vannini – Deixou-nos a imagem de Deus como Nada – ou seja, um Todo que não é possível compreender senão negativamente, como Nada justamente. Isso explica por que Angela, exatamente como Marguerite Porete, fala do não amor como o próprio cumprimento do amor. De fato, o amor sempre se dirige a algo determinado, finito, e depende dos laços do próprio eu, enquanto o amor mais puro não tem objeto, é “sem porquê” (uma expressão que já encontramos na poesia do seu contemporâneo úmbrio, o franciscano Jacopone de Todi) e deve cessar precisamente enquanto amor, desejo, vínculo, em perfeita correspondência com o extinguir-se do próprio eu.
IHU On-Line – Que relação há entre Angela e Francisco de Assis? Em que sentido a mística de Angela – que nasceu pouco mais de 20 anos após a morte do santo de Assis – foi uma mística “franciscana”?
Marco Vannini – Diria que ela foi franciscana sobretudo pelo lugar e pela época, aquela Úmbria mística da Idade Média que sequer se pode conceber sem a presença do espírito franciscano. Também sublinhamos que, naquela época, houve um florescer extraordinário de experiências místicas femininas. Margherita de Cortona, Vanna de Orvieto, Chiara de Montefalco, todas coetâneas de Angela e operantes a poucos quilômetros de distância. Para todas elas, o espírito franciscano se manifesta, em primeiro lugar, na pietas voltada à Paixão de Cristo, ao Cristo crucificado, literalmente “co-sofrido” [com-patito], ou seja, compartilhado na sua Paixão.
Específica de Angela, mas ainda de cunho franciscano, é a prática ascética, verdadeiramente intensa; a escolha voluntária da pobreza, fora de conventos ou instituições; a caridade operante, voltada aos pobres e aos doentes. Muito significativo nesse sentido também é o relativo distanciamento que Angela mostra com relação à função intermediária do clero, da cultura teológica e religiosa, em benefício de um saber totalmente interior, dado pelo livre colóquio da alma com Deus. “Aqueles que leem a Escritura entendem pouco; aqueles que sentem algo de mim entendem bem mais”, escreve por isso Angela.
IHU On-Line – E o que mais é possível falar sobre Marguerite Porete? Que outros aspectos é possível ressaltar sobre a experiência mística dessa mulher francesa?
Marco Vannini – Não sabemos com precisão quem foi Marguerite Porete, já que as únicas notícias certas que temos sobre ela são aquelas deduzidas das atas do processo que a condenou à morte como herege, na Paris de Felipe, o Belo. No entanto, ela devia ser uma mulher de cultura, provavelmente de origem aristocrática, como fica evidente no livro, no qual cortesia e nobreza desempenham um papel essencial.
Como já disse, creio que os pontos centrais da verdadeira mística são sempre os mesmos, ou muito de perto correspondentes. Em Marguerite, no entanto, a via do distanciamento, a via do nada é percorrida verdadeiramente até o extremo limite, com uma coerência, uma determinação e uma radicalidade impressionantes, que se lança ao distanciamento até de Deus. Limito-me a citar esta extraordinária passagem, do capítulo 135 do Espelho:
“Para a alma tudo é uma só coisa, sem porquê, e ela é nada em tal Uno. Então não sabe mais o que fazer com Deus, nem Deus com ela. Por quê? Porque ele é, e ela não é. Ela não retém mais nada para si, no seu próprio nada, já que lhe basta isso, ou seja, que ele é, e ela não é. Então, é nada de todas as coisas, já que é sem ser, e lá onde era antes de ser. Por isso ela tem de Deus aquilo que tem; e é aquilo que Deus mesmo é, por transformação de amor”.
IHU On-Line – Para Romana Guarnieri, O espelho das almas simples, de Marguerite, é uma “autêntica obra-prima da literatura mística de todos os tempos”. Em sua opinião, qual é a importância dessa obra?
Marco Vannini – Acima de tudo, devo dizer que compartilho plenamente o juízo que Romana Guarnieri dá sobre esse escrito, com a qual tive a honra de colaborar na edição italiana do Espelho. O Mestre Eckhart se inspirou nele em alguns pontos do seu pensamento e, em particular, naqueles mais profundos e ousados, como, por exemplo, no célebre sermão Beati pauperes spiritu [Bem-aventurados os pobres de espírito], no qual ele fala da necessidade de que o homem “pobre” não tenha na alma sequer um “lugar próprio”, de modo que o próprio Deus seja o “lugar próprio da sua obra, dado que Deus opera em si mesmo”. Aqui é clara a leitura do Espelho, no qual a alma aniquilada “não tem fundo e, portanto, não tem lugar próprio e, consequentemente, não tem amor próprio”. De fato, para Marguerite, assim como para Angela de Foligno, a alma que se fez verdadeiramente nada “colocou todo o amor debaixo dos pés”.
O livro de Marguerite, embora condenado, continuou a ser lido, mais ou menos ocultamente. Seguramente foi conhecido por santa Catarina de Gênova, assim também pela milanesa Isabella Berinzaga, cujo Breve compendio sulla perfezione cristiana, traduzido ao francês no fim do século XVI, está na base do extraordinário florescimento místico do século XVII na França. Simone Weil (sempre se trata de mulheres!) também o leu e o amou, mesmo que no fim de sua breve vida, e hoje me parece que ele é unanimemente reconhecido em toda a sua extraordinária profundidade.
IHU On-Line – O que foi o movimento beguinal, do qual Marguerite fez parte? E qual foi a novidade trazida pelas beguinas à mística?
Marco Vannini – O movimento das beguinas foi um movimento extraordinário, sem origem, sem fundadora, sem regra. De fato, as beguinas eram mulheres, não casadas e não Irmãs, que, por cerca de oito séculos, mas, sobretudo, em plena Idade Média e no vale do Reno, viveram em pequenos grupos do seu próprio trabalho ou na mendicância, em uma extraordinária síntese de comunhão e de liberdade, de aprofundamento espiritual e de empenho caritativo – basta pensar que foram, de fato, as primeiras enfermeiras da história europeia. Pelo seu caráter de independência da autoridade masculina, o movimento beguinal poderia ser considerado o primeiro movimento feminista, mas seria verdadeiramente desviante inscrevê-lo nas categorias redutivas do feminismo – sem contar, depois, o fato de que ele também teve um correspondente masculino, o dos beguinos, ou begardos.
Não há dúvida de que entre as beguinas houve personalidades eminentes na história da mística – Beatrijs de Nazareth, Hadewijch de Antuérpia, a própria Marguerite Porete, se é que foi beguina – mas sobre o movimento beguino pesou frequentemente a suspeita de heresia, voltada por diversas vezes a essas mulheres por parte das autoridades eclesiásticas, talvez temerosas, acima de tudo, de perder o controle da sociedade. Nesse caso, mais uma vez, a “liberdade do espírito”, do qual a mística é composta, foi advertida como perigosa para o dogma, para a doutrina, para a instituição religiosa constituída. Não resta dúvida, entretanto, que a mística beguinal – Minnenmystik, “mística do amor cortês” por excelência – alimentou com a sua riqueza alguns dos maiores místicos medievais, como Ruusbroec e Eckhart.
IHU On-Line – Em que sentido a mística de Angela e de Marguerite nos é contemporânea?
Marco Vannini – Ela nos é contemporânea no sentido de que, como dizia no início, a experiência do espírito é quase idêntica em todos as épocas e em todos os lugares, e vai muito além das distinções espaço-temporais, além daquelas, como eu dizia, de gênero. Para mim, homem, as palavras de Angela ou de Marguerite falam não como palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade.
IHU On-Line – Como percebe a relação entre teologia/filosofia e mística? Há hoje a necessidade de uma nova gramática teológico-filosófica para captar a novidade dos místicos?
Marco Vannini – Há um caso emblemático que eu gostaria de citar para responder essa a pergunta. O franciscano são Pedro de Alcântara escreveu a santa Teresa de Jesus, em Ávila, que se maravilhava muito que ela tivesse pedido conselho a teólogos sobre problemas espirituais, novas fundações de conventos etc., porque, em matéria de perfeição, é preciso dirigir-se só a quem a pratica, e disso os teólogos não sabem nada. Eles são especialistas em questões doutrinais, escolásticas, ou talvez jurídicas, mas certamente não em questões espirituais.
A teologia nascera como teo-logia, ou seja, discurso racional sobre Deus, em contraposição aos mitos (lembro que a palavra foi cunhada assim por Platão), com a consciência de que, na realidade, não sabemos nada de Deus, mas que devemos pensar só que ele é bom, e que dele vêm todos os bens. Trata-se, por isso, não de fazer discursos impossíveis sobre Deus, mas sim de nos tornarmos semelhantes a ele (omòiosis tò theo). Hoje, ao contrário, há “teologia” de tudo: a palavra teologia deixou de ter o seu significado originário e se tornou uma espécie de “tudologia”.
Isso vale hoje, com maior razão, também para a filosofia. No momento em que ela perdeu a consciência de ser “ciência da verdade”, como Aristóteles a chama, e de ter em comum com a religião o objeto, que é o Absoluto em si e por si, como dizia Hegel, é evidente que não tem nada a ver com a mística, que, aliás, realmente não entende. Por isso não é de se admirar que a palavra filosofia, hoje, também é adotada no sentido, por exemplo, de estratégia empresarial (a filosofia da Fiat...).
O saudoso professor Hadot defendia com razão que a verdadeira continuação da filosofia, que é a grega clássica, foi a mística: enquanto a teologia sempre foi dependente da instituição eclesiástica, da dogmática, do respeito pela Sagrada Escritura, pelos Concílios etc. – e desse modo perdeu aquela liberdade da inteligência que, sozinha, a filosofia pode dar –, só a mística continuou a via mestra do filosofar, que é o distanciamento, o platônico exercitar-se a morrer.
A filosofia em sentido forte não é continuada nem nas universidades medievais, submetidas à Igreja, nem nas modernas, sempre submetidas ao poder e coligadas com ele: o professor é sempre um funcionário, enquanto o místico realmente não o é.
Não penso, por isso, que haja a necessidade de uma nova gramática teológico-filosófica: já a possuímos desde a antiguidade clássica. Ao contrário, há a necessidade de experiência.
IHU On-Line – Como as grandes religiões do mundo abordam a mística? Que diferenças existem em termos de compreensão da mística e da sua experiência?
Marco Vannini – Sobre esse tema, eu escrevi um livro: La mistica delle grandi religioni, onde sustento, acima de tudo, que, no coração das grandes religiões, que, no entanto, são diversas entre si em tantas coisas, e até mesmo opostas – e como tais muitas vezes se combateram e ainda se combatem –, há uma mística quase idêntica. Embora as religiões sejam diferentes, dizia Simone Weil, as místicas se assemelham até quase a identidade.
Dito isso, já é implícito o fato de que a relação entre mística e religião é uma relação não fácil, ou melhor, difícil, muitas vezes conflituosa. De fato, a mística – que, como dizia acima, é a legítima herdeira da filosofia antiga – é por sua natureza inclinada a superar toda forma de mediação, voltada a uma relação direta entre a alma e Deus, que se encontram até se reconhecerem como uma coisa só. Por isso ela alimenta, ao mesmo tempo, a religião, ou seja, a religiosidade mais profunda e remove toda religião quando ela pretende se constituir como dogmática, prescrição moralista ou sacerdotal.
Exemplar nesse sentido é a o fato de a mística se pôr diante das Sagradas Escrituras (quando se possui uma religião): nasce aqui, de fato, a oposição espírito-letra, por força da qual o místico, mesmo quando respeita profundamente a Escritura, considerando-a “palavra de Deus”, pensa, no entanto, que a palavra mais verdadeira e profunda é aquela que o espírito dirige ao espírito, para além e acima de toda palavra escrita. Deus é espírito, disse Jesus à samaritana (João 4, 24) e não é honrado nem nos templos nem sobre os montes, mas somente em espírito e verdade. Ou melhor, o distanciamento, que é o coração de toda mística, se lança até ser distanciamento das Escrituras, e, como vimos em Marguerite Porete, até de Deus mesmo, enquanto imagem determinada, finita. Não é por acaso que as palavras dirigidas por Jesus aos discípulos despedindo-se deles em João 16, 7 – “É necessário para vós que eu vá, pois, se eu não for, o Espírito não virá a vós” – são singularmente caras aos místicos mais profundos. E é evidente que isso não é a coisa mais apta para que as religiões sustentem em sua estrutura positiva, litúrgica, dogmática etc.
Também é preciso notar que, entre as grandes religiões do mundo, as mais hostis à mística são seguramente a judaica e a muçulmana, enquanto religiões da absoluta transcendência de Deus, para as quais é blasfema a ideia da união homem-Deus, ou também da divinização do homem. A expressão “mística judaica” é recentíssima: foi cunhada no século XX por Buber e Scholem, mas até então soava como absurda, precisamente como dizer “um ferro de madeira”, e é bem difícil assimilar um fenômeno como a cabala a Plotino ou ao Mestre Eckhart! No islamismo, sem dúvida houve grandes místicos – penso sobretudo em Al-Hallaj e em Ibn-Arabi –, mas não é por acaso que eles foram considerados heterodoxos.
O cristianismo, ao invés, precisamente enquanto cristianismo, ou seja, religião fundada sobre Cristo, considerado verdadeiro Deus e verdadeiro homem – ou seja, religião da divino-humanidade – é intrínseca e substancialmente místico.
Em menor medida, também se pode dizer isso sobre a grande tradição religiosa da Índia, em particular do não dualismo (advaita), porque aqui também é claríssimo o sentido da unidade entre espírito de Deus e espírito do homem. Nos nossos dias, é interessantíssimo e importante o caso de Henri le Saux, o beneditino francês que foi à Índia e ali assumiu vestes, linguagem e nome, reconhecendo a profundidade do vedanta, mas nem por isso abandonou o cristianismo: ao contrário, considerou que a experiência espiritual da Índia o ajudava a compreender verdadeiramente a própria mensagem cristã. Essa é uma consideração que compartilho plenamente: com le Saux, considero que o futuro do cristianismo deve, por assim dizer, “atravessar” a espiritualidade da Índia. De outra parte, aquilo que encontramos na Índia não é, de fato, dessemelhantes daquilo que podemos encontrar também no Ocidente: o livro de Rudolf Otto, West-Östliche Mystik, que eu traduzi ao italiano há tantos anos, pondo em debate Mestre Eckhart e Sankara, mostra isso adequadamente. A relação de estreitíssima semelhança entre Eckhart e le Saux também é objeto de meu livro Oltre Il cristianesimo [Além do cristianismo], no prelo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?
Marco Vannini – Acredito que o renovado interesse pela mística, feminina ou não, depois de tantos séculos de remoção, é um dos sinais mais positivos em âmbito religioso, e cristão em particular. É preciso, no entanto, que se sublinhe o seu valor de conhecimento, psicológico e espiritual, e não o confessional, como, ao contrário, tem sido feito até agora.
(Por Moisés Sbardelotto) Tweet
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