quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

MISSA DA NOITE DE NATAL


SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR

HOMILIA DO SANTO PADRE BENTO XVI

Basílica Vaticana
24 de Dezembro de 2012

Amados irmãos e irmãs!

A beleza deste Evangelho não cessa de tocar o nosso coração: uma beleza que é esplendor da verdade. Não cessa de nos comover o facto de Deus Se ter feito menino, para que nós pudéssemos amá-Lo, para que ousássemos amá-Lo, e, como menino, Se coloca confiadamente nas nossas mãos. Como se dissesse: Sei que o meu esplendor te assusta, que à vista da minha grandeza procuras impor-te a ti mesmo. Por isso venho a ti como menino, para que Me possas acolher e amar.

Sempre de novo me toca também a palavra do evangelista, dita quase de fugida, segundo a qual não havia lugar para eles na hospedaria. Inevitavelmente se põe a questão de saber como reagiria eu, se Maria e José batessem à minha porta. Haveria lugar para eles? E recordamos então que esta notícia, aparentemente casual, da falta de lugar na hospedaria que obriga a Sagrada Família a ir para o estábulo, foi aprofundada e referida na sua essência pelo evangelista João nestes termos: «Veio para o que era Seu, e os Seus não O acolheram» (Jo 1, 11). Deste modo, a grande questão moral sobre o modo como nos comportamos com os prófugos, os refugiados, os imigrantes ganha um sentido ainda mais fundamental: Temos verdadeiramente lugar para Deus, quando Ele tenta entrar em nós? Temos tempo e espaço para Ele? Porventura não é ao próprio Deus que rejeitamos? Isto começa pelo facto de não termos tempo para Deus. Quanto mais rapidamente nos podemos mover, quanto mais eficazes se tornam os meios que nos fazem poupar tempo, tanto menos tempo temos disponível. E Deus? O que diz respeito a Ele nunca parece uma questão urgente. O nosso tempo já está completamente preenchido. Mas vejamos o caso ainda mais em profundidade. Deus tem verdadeiramente um lugar no nosso pensamento? A metodologia do nosso pensamento está configurada de modo que, no fundo, Ele não deva existir. Mesmo quando parece bater à porta do nosso pensamento, temos de arranjar qualquer raciocínio para O afastar; o pensamento, para ser considerado «sério», deve ser configurado de modo que a «hipótese Deus» se torne supérflua. E também nos nossos sentimentos e vontade não há espaço para Ele. Queremo-nos a nós mesmos, queremos as coisas que se conseguem tocar, a felicidade que se pode experimentar, o sucesso dos nossos projectos pessoais e das nossas intenções. Estamos completamente «cheios» de nós mesmos, de tal modo que não resta qualquer espaço para Deus. E por isso não há espaço sequer para os outros, para as crianças, para os pobres, para os estrangeiros. A partir duma frase simples como esta sobre o lugar inexistente na hospedaria, podemos dar-nos conta da grande necessidade que há desta exortação de São Paulo: «Transformai-vos pela renovação da vossa mente» (Rm 12, 2). Paulo fala da renovação, da abertura do nosso intelecto (nous); fala, em geral, do modo como vemos o mundo e a nós mesmos. A conversão, de que temos necessidade, deve chegar verdadeiramente até às profundezas da nossa relação com a realidade. Peçamos ao Senhor para que nos tornemos vigilantes quanto à sua presença, para que ouçamos como Ele bate, de modo suave mas insistente, à porta do nosso ser e da nossa vontade. Peçamos para que se crie, no nosso íntimo, um espaço para Ele e possamos, deste modo, reconhecê-Lo também naqueles sob cujas vestes vem ter connosco: nas crianças, nos doentes e abandonados, nos marginalizados e pobres deste mundo.

Na narração do Natal, há ainda outro ponto que gostava de reflectir juntamente convosco: o hino de louvor que os anjos entoam depois de anunciar o Salvador recém-nascido: «Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens do seu agrado». Deus é glorioso. Deus é pura luz, esplendor da verdade e do amor. Ele é bom. É o verdadeiro bem, o bem por excelência. Os anjos que O rodeiam transmitem, primeiro, a pura e simples alegria pela percepção da glória de Deus. O seu canto é uma irradiação da alegria que os inunda. Nas suas palavras, sentimos, por assim dizer, algo dos sons melodiosos do céu. No canto, não está subjacente qualquer pergunta sobre a finalidade; há simplesmente o facto de transbordarem da felicidade que deriva da percepção do puro esplendor da verdade e do amor de Deus. Queremos deixar-nos tocar por esta alegria: existe a verdade; existe a pura bondade; existe a luz pura. Deus é bom; Ele é o poder supremo que está acima de todos os poderes. Nesta noite, deveremos simplesmente alegrar-nos por este facto, juntamente com os anjos e os pastores.

E, com a glória de Deus nas alturas, está relacionada a paz na terra entre os homens. Onde não se dá glória a Deus, onde Ele é esquecido ou até mesmo negado, também não há paz. Hoje, porém, há correntes generalizadas de pensamento que afirmam o contrário: as religiões, mormente o monoteísmo, seriam a causa da violência e das guerras no mundo; primeiro seria preciso libertar a humanidade das religiões, para se criar então a paz; o monoteísmo, a fé no único Deus, seria prepotência, causa de intolerância, porque pretenderia, fundamentado na sua própria natureza, impor-se a todos com a pretensão da verdade única. É verdade que, na história, o monoteísmo serviu de pretexto para a intolerância e a violência. É verdade que uma religião pode adoecer e chegar a contrapor-se à sua natureza mais profunda, quando o homem pensa que deve ele mesmo deitar mão à causa de Deus, fazendo assim de Deus uma sua propriedade privada. Contra estas deturpações do sagrado, devemos estar vigilantes. Se é incontestável algum mau uso da religião na história, não é verdade que o «não» a Deus restabeleceria a paz. Se a luz de Deus se apaga, apaga-se também a dignidade divina do homem. Então, este deixa de ser a imagem de Deus, que devemos honrar em todos e cada um, no fraco, no estrangeiro, no pobre. Então deixamos de ser, todos, irmãos e irmãs, filhos do único Pai que, a partir do Pai, se encontram interligados uns aos outros. Os tipos de violência arrogante que aparecem então com o homem a desprezar e a esmagar o homem, vimo-los, em toda a sua crueldade, no século passado. Só quando a luz de Deus brilha sobre o homem e no homem, só quando cada homem é querido, conhecido e amado por Deus, só então, por mais miserável que seja a sua situação, a sua dignidade é inviolável. Na Noite Santa, o próprio Deus Se fez homem, como anunciara o profeta Isaías: o menino nascido aqui é «Emmanuel – Deus-connosco» (cf. Is 7, 14). E verdadeiramente, no decurso de todos estes séculos, não houve apenas casos de mau uso da religião; mas, da fé no Deus que Se fez homem, nunca cessou de brotar forças de reconciliação e magnanimidade. Na escuridão do pecado e da violência, esta fé fez entrar um raio luminoso de paz e bondade que continua a brilhar.

Assim, Cristo é a nossa paz e anunciou a paz àqueles que estavam longe e àqueles que estavam perto (cf. Ef 2, 14.17). Quanto não deveremos nós suplicar-Lhe nesta hora! Sim, Senhor, anunciai a paz também hoje a nós, tanto aos que estão longe como aos que estão perto. Fazei que também hoje das espadas se forjem foices (cf. Is 2, 4), que, em vez dos armamentos para a guerra, apareçam ajudas para os enfermos. Iluminai a quantos acreditam que devem praticar violência em vosso nome, para que aprendam a compreender o absurdo da violência e a reconhecer o vosso verdadeiro rosto. Ajudai a tornarmo-nos homens «do vosso agrado»: homens segundo a vossa imagem e, por conseguinte, homens de paz.

Logo que os anjos se afastaram, os pastores disseram uns para os outros: Coragem! Vamos até lá, a Belém, e vejamos esta palavra que nos foi mandada (cf. Lc 2, 15). Os pastores puseram-se apressadamente a caminho para Belém – diz-nos o evangelista (cf. 2, 16). Uma curiosidade santa os impelia, desejosos de verem numa manjedoura este menino, de quem o anjo tinha dito que era o Salvador, o Messias, o Senhor. A grande alegria, de que o anjo falara, apoderara-se dos seus corações e dava-lhes asas.

Vamos até lá, a Belém: diz-nos hoje a liturgia da Igreja. Trans-eamus – lê-se na Bíblia latina – «atravessar», ir até lá, ousar o passo que vai mais além, que faz a «travessia», saindo dos nossos hábitos de pensamento e de vida e ultrapassando o mundo meramente material para chegarmos ao essencial, ao além, rumo àquele Deus que, por sua vez, viera ao lado de cá, para nós. Queremos pedir ao Senhor que nos dê a capacidade de ultrapassar os nossos limites, o nosso mundo; que nos ajude a encontrá-Lo, sobretudo no momento em que Ele mesmo, na Santa Eucaristia, Se coloca nas nossas mãos e no nosso coração.

Vamos até lá, a Belém! Ao dizermos estas palavras uns aos outros, como fizeram os pastores, não devemos pensar apenas na grande travessia até junto do Deus vivo, mas também na cidade concreta de Belém, em todos os lugares onde o Senhor viveu, trabalhou e sofreu. Rezemos nesta hora pelas pessoas que actualmente vivem e sofrem lá. Rezemos para que lá haja paz. Rezemos para que Israelitas e Palestinianos possam conduzir a sua vida na paz do único Deus e na liberdade. Peçamos também pelos países vizinhos – o Líbano, a Síria, o Iraque, etc. – para que lá se consolide a paz. Que os cristãos possam conservar a sua casa naqueles países onde teve origem a nossa fé; que cristãos e muçulmanos construam, juntos, os seus países na paz de Deus.

Os pastores apressaram-se… Uma curiosidade santa e uma santa alegria os impelia. No nosso caso, talvez aconteça muito raramente que nos apressemos pelas coisas de Deus. Hoje, Deus não faz parte das realidades urgentes. As coisas de Deus – assim o pensamos e dizemos – podem esperar. E todavia Ele é a realidade mais importante, o Único que, em última análise, é verdadeiramente importante. Por que motivo não deveríamos também nós ser tomados pela curiosidade de ver mais de perto e conhecer o que Deus nos disse? Supliquemos-Lhe para que a curiosidade santa e a santa alegria dos pastores nos toquem nesta hora também a nós e assim vamos com alegria até lá, a Belém, para o Senhor que hoje vem de novo para nós. Amen.



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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Feliz Natal!


O Natal manifesta o amor de Deus. Ele vem ao nosso encontro de maneira desarmada e afetuosa, na fragilidade e na beleza de uma criança recém-nascida.

Que este amor seja nosso alento e nossa coragem, na busca de um mundo melhor e mais inclusivo.

Feliz Natal!

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Bento XVI: Natal em tempos de austeridade


Cidade do Vaticano, 20 dez 2012 (Ecclesia) – Bento XVI assina hoje um artigo de opinião no jornal ‘Financial Times’ (FT) sobre a celebração do Natal em tempos de austeridade, apelando ao compromisso dos cristãos na transformação do mundo.

“O nascimento de Cristo desafia-nos a reformular as nossas prioridades, os nossos valores, o nosso modo de vida: sendo, sem dúvida, um tempo de grande alegria, o Natal é também ocasião para uma profunda reflexão, mesmo um exame de consciência”, assinala o Papa.

O texto fala num ano que trouxe “privações económicas para muitos”, no qual a cena do presépio pode surgir como lição de “humildade, pobreza, simplicidade”.

“Os cristãos combatem a pobreza pelo reconhecimento da suprema dignidade de todo o ser humano, criado à imagem de Deus e destinado à vida eterna”, o que dá um sentido de “urgência à tarefa de promover a paz e a justiça para todos”, refere o artigo, intitulado ‘A time for Christians to engage with the world’ (Um tempo de compromisso no mundo para os cristãos, em tradução livre).

Neste sentido, o Papa diz que os mesmos não podem “fugir ao mundo”, mas devem comprometer-se nele, numa ação que tem de “transcender qualquer forma de ideologia”.

“Os cristãos trabalham para uma partilha mais equitativa dos recursos da terra a partir da convicção de que, como guardiões da criação de Deus, temos o dever de cuidar dos pobres e mais vulneráveis”, sublinha.

Bento XVI condena a “ganância e exploração” a partir da certeza de que “a generosidade e o amor desinteressado, ensinados e vividos por Jesus de Nazaré, são o caminho que leva à plenitude da vida”.

O Papa apresenta uma reflexão sobre a relação dos cristãos com a política a partir da expressão ‘Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’, que Jesus proferiu ao ser interrogado sobre a necessidade do pagamento de impostos aos romanos, segundo os evangelhos, fugindo assim a uma “armadilha” em relação à questão da ocupação do território de Israel.

“Quando os cristãos se recusam a inclinar-se perante os falsos deuses hoje propostos, não é por causa de uma visão do mundo antiquada, mas porque estão livres de constrangimentos ideológicos e inspirados por uma tão nobre visão do destino humano que não podem ceder perante algo que a mine”, observa.

O artigo adverte contra os perigos da “politização da religião” e da “deificação do poder temporal”, bem como da “insaciável busca de riqueza”.

O nascimento de Jesus, prossegue Bento XVI, marca o fim de uma era, dominada pelo César, e o reinado de quem “não confia na força das armas, mas no poder do amor”.

“Ele traz esperança aos que estão vulneráveis à fortuna em mudança do mundo precário”, sustenta.

Segundo o Papa, os relatos do Novo Testamento sobre o nascimento de Jesus mostram que “este menino, nascido num canto obscuro e distante” do Império Romano, veio oferecer ao mundo “uma paz muito maior, verdadeiramente universal nos seus objetivos e transcendente”.

O Vaticano explica, em comunicado, que o artigo foi pedido pelo FT após a publicação da nova obra de Bento XVI sobre a infância de Jesus.

“Apesar da natureza invulgar do pedido, o Santo Padre aceitou de bom grado”, acrescenta a nota da sala de imprensa da Santa Sé, que recorda as entrevistas concedidas pelo Papa à BBC e à RAI como momentos em que o líder da Igreja Católica quis “passar a sua mensagem a um auditório maior”.

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sábado, 22 de dezembro de 2012

O verdadeiro sentido do Natal


Nossa Senhora chamada de Maria com muita propriedade porque foi provida por Deus para receber o Menino Jesus que é o Espírito Santo, de forma humilde, isento de apego às coisas materiais, numa manjedoura, cercada de animais, anjos e estrelas que indicaram aos Reis Magos o caminho do Rei que acabara de nascer. O sofrimento de Maria começou quando Herodes não o reconheceu como Rei, levando Maria a fugir com José para o Egito. O Menino Jesus aos doze anos não acompanhou os pais, distinguindo-se no Templo ensinando aos doutores o amor ao próximo; Maria o reencontrou e entendeu a missão de Jesus na terra, começou a sentir o quanto Ele sofreria diante dos seus ensinamentos de bondade, perdão e paz entre os irmãos. O Natal é o renascimento de Jesus que deve ser celebrado entre os homens abraçando as pregações de Jesus pela igualdade social, semeando a paz e o amor... Este é o verdadeiro sentido do Natal para o cristão!

Contribuição de Rita Nogueira, mãe de Hugo Nogueira, membro do Diversidade Católica

Anunciação


Anunciação
(M.Reider)

“Conhecerás, Maria
A dor e a delícia
De ser viúva filho
Órfão estrangeira

Nova Eva
Alimenta-te do fruto
E o oferece ao mundo
Sem culpa

Olhos se abrirão
E Deus conosco será
O preço? O Éden.
Do pomo, sementes

Ante a serpente elevada
Repousa eternamente
A força que pisa
A serpente que rasteja

Serva a água
Serve o sudário
Envolve o sangue
Limpa o suor seca

Camponesa segue
Sua sina o solo
Rega a lágrima
Não enxuga

O tronco nu
Aponta o grão
Oculto ressurge
Florido em campo

O tempo futuro
É próximo o filho
Abraça e colherás
Bendito o fruto”

Poema utilizado com permissão do autor, conheça o seu blog

Bento XVI e as ameaças contra a humanidade


O papa Bento XVI disse que o casamento homossexual “ameaça o futuro da humanidade”.

Eu pensava que o que o ameaçava eram as guerras (muitas delas étnicas ou religiosas), a fome, a miséria econômica, a desigualdade e as injustiças sociais, a violência, o tráfico de drogas e de armas, a corrupção, o crime organizado, as ditaduras de todo tipo, a supressão das liberdades em diferentes países, os genocídios, a poluição ambiental, a destruição das florestas, as epidemias… Porém o papa, mesmo ciente de todos esses males e consciente de que sua instituição – a Igreja Católica Apostólica Romana – contribuiu com muitos deles ao longo da história ocidental, disse que a humanidade é ameaçada pelo fato de dois homens ou duas mulheres se amarem e, por isso, decidirem construir um projeto de vida comum e obter o reconhecimento legal dessa união para gozar de direitos já garantidos aos heterossexuais.

O amor e a felicidade como ameaças contra a humanidade: foi o que afirmou Bento XVI.

O amor, uma ameaça?!

Dentre todos os desatinos do papa, este foi o que mais me chocou. Talvez porque sua afirmação estapafúrdia e anacrônica tenha violado diretamente a minha dignidade humana de homossexual assumido e orgulhoso de minha orientação sexual e de minha formação científica (sim, porque a afirmação de Bento XVI parte da crença absurda de que o casamento civil igualitário vai transformar todos os homens e mulheres em homossexuais e vai impedir que todas as mulheres da Terra recorram às técnicas de reprodução artificial).

Outros artigos de Jean Wyllys:
O começo de uma teocracia no Brasil?
Não há bem que nunca acabe, não há mal que sempre dure
O jornalismo sexista

Ora, o amor, como a fé, é inexplicável: sente-se ou não. Não há dicionário que possa defini-lo; só o poeta pode dizer alguma coisa a respeito — fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente — mas para entendê-lo é preciso sentir tudo aquilo que o papa, os cardeais, os bispos e os padres, pelas regras do trabalho que escolheram desde jovens, são proibidos de sentir – seja por outro homem, seja por uma mulher.

Talvez por isso eles não entendem.

Mas o amor nunca poderia ser uma ameaça para a humanidade; antes, sim, uma salvação para os seus piores males, um antídoto contra os venenos que a intoxicam, uma vacina contra as doenças que a afligem. O papa está errado de cabo a rabo. Ele não entendeu nada mesmo.

Contudo, mesmo não entendendo, ele deveria ter um pouco de responsabilidade. Suas palavras têm poder, influência, entram na cabeça e no coração de milhões de pessoas no mundo inteiro. Ele poderia usá-las para fazer o bem. Em vez de dedicar tanto tempo e esforço a injuriar os homossexuais — eu confesso que não consigo entender o porquê dessa obsessão que ele tem com a gente — o papa poderia se colocar na luta contra os verdadeiros males que ameaçam, sim, a humanidade. Esses que matam milhões, que arruínam vidas, que condenam povos inteiros.

Bento XVI não pode continuar difundindo o ódio e o preconceito contra os gays. Ele não pode dizer que nós, só por amarmos, só por reclamarmos que o nosso amor seja respeitado e reconhecido, somos “uma ameaça”. Aliás, porque esse tipo de frases têm uma história. “Os judeus são a nossa desgraça!” (“Die Juden sind unser Unglück!”), disse o historiador Heinrich von Treitschke, e essa desgraçada expressão, publicada na revista alemã Der Sturmer e logo usada como lema pelos nazistas, deu no que deu. Nós, homossexuais, também sabemos disso: o nosso destino na Alemanha nazista, onde Bento XVI passou sua juventude, era o mesmo dos judeus, só que em vez da estrela de Davi, o que nos identificava noscampos de concentração era o triângulo rosa.

A tragédia do nazismo deveria ter servido para aprender que o outro, o diferente, não é uma ameaça, nem uma desgraça, nem o inimigo. E nós, homossexuais, não ameaçamos ninguém. O nosso amor é tão belo e saudável como o de qualquer um. E merecemos o mesmo respeito e os mesmos direitos que qualquer um.

Da mesma maneira que acontece agora com o “casamento gay”, o casamento entre negros e brancos — chamado, na época, “casamento inter-racial” — já foi considerado “antinatural e contrário à lei de Deus” e uma ameaça contra a civilização. Numa sentença de 1966, um tribunal de Virgínia que convalidou sua proibição usou estas palavras: “Deus todo-poderoso criou as raças branca, negra, amarela, malaia e vermelha e as colocou em continentes separados. O fato de Ele tê-las separado demonstra que Ele não tinha a intenção de que as raças se misturassem”. O casamento entre alemães “da raça ária” e judeus também foi proibido por Hitler. Até os evangélicos tiveram o direito ao casamento negado em muitos países durante muito tempo, porque eram, também, uma ameaça para a Igreja católica. Parece que alguns pastores não se lembram, mas foi assim.

Na Argentina, que em 2010 aprovou o casamento igualitário, a primeira grande reforma ao Código Civil, no século XIX, foi impulsionada pela demanda dos protestantes, que reclamavam o direito a se casar. Vários casais não católicos se apresentaram na Justiça, como agora fazem os homossexuais. Quando o país aprovou a lei de criação do Registro Civil e, depois, o matrimônio civil, em 1888, houve graves enfrentamentos entre o governo argentino e a Igreja Católica, que incluíram a quebra das relações diplomáticas com o Vaticano. No Senado, um dos opositores ao matrimônio civil disse que, a partir de sua aprovação, perdida a “santidade” do matrimônio, a família deixaria de existir. A lei foi chamada de “obra-mestra da sabedoria satânica” por monsenhor Mamerto Esquiú, quem disse sobre os governantes argentinos da época que “amamentam-se dos peitos da grande prostituta, a Revolução Francesa”. Todas a predições apocalípticas que foram feitas contra a lei de matrimônio civil, no entanto, não se cumpriram. Anunciaram, garantiram que o mundo ia se acabar… mas o mundo não se acabou.

Passou-se mais de um século, mas as discussões são as mesmas. Os argumentos são os mesmos. E o papa Bento XVI continua sem entender. Não entende, tampouco, que o casamento civil e o casamento religioso são duas instituições diferentes. O casamento civil está regulamentado pelo Código Civil, que pode ser modificado pelo Congresso, já o casamento religioso depende das leis de cada igreja: por exemplo, o casamento católico é diferente do casamento judeu.

O casamento religioso é feito na igreja, templo, mesquita ou terreiro; o civil, no cartório. Para celebrar o casamento religioso na Igreja católica, os noivos devem ser batizados ou fazer um juramento supletório do batismo e devem realizar um curso prévio na igreja – o que não é necessário para o casamento civil, que pode ser celebrado por pessoas de qualquer religião ou por ateus. O casamento religioso, na maioria das igrejas cristãs, é indissolúvel – já o civil admite o divórcio.

Em conseqüência, uma pessoa pode se casar na Igreja apenas uma vez na vida, mas pode casar quantas vezes quiser no cartório, desde que seja divorciada. O casamento religioso, para que produza efeitos jurídicos, deve ser registrado no cartório – os efeitos jurídicos do casamento civil são imediatos. E essas são apenas algumas das muitas diferenças que existem entre o casamento civil e o religioso…
O que nós, homossexuais, reclamamos é o direito ao casamento civil. O projeto de emenda constitucional (PEC) que estou impulsionando no Congresso não mexe em nada com casamento religioso, cujos efeitos jurídicos são reconhecidos no art. 226 § 2 da Constituição, que se manterá inalterado. Meu projeto legaliza o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mas nada diz sobre o casamento religioso. Da mesma maneira que o Estado não deve interferir na liberdade religiosa, as religiões não devem interferir no direito civil. Este último é uma instituição laica, que deve atender por igual as necessidades daqueles e daquelas que acreditam em Deus — em qualquer Deus ou em vários Deuses — e também daqueles e daquelas que não acreditam.

Chegará o dia no qual uma criança irá à biblioteca da escola para procurar, nos livros de história, alguma explicação sobre um fato surpreendente que o professor comentou em sala de aula: “Até o início do século 21, o casamento entre dois homens ou duas mulheres não era permitido”. Para o nosso pequeno cidadão, essa antiga proibição resultará tão absurda como hoje nos resulta a proibição do casamento entre negros e brancos, ou do voto feminino. E se ele descobrir, na biblioteca, que houve um dia em que um papa disse que o casamento gay ameaçava a humanidade, provavelmente sentirá a mesma repulsa que nós sentimos ao lermos a desgraçada frase de von Treitschke.

Bento XVI deveria pensar se ele quer passar à história dessa maneira. Ainda está em tempo.

Tomara que algum dia ele seja capaz de entender e aceitar o amor — qualquer maneira de amor e de amar — e fazer aquilo que Jesus Cristo pregava: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”.

Jean Wyllys

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Imagem: Botticelli

"O papa e a 'ameaça' gay"


Três dias antes do Natal, a televisão deu uma notícia surpreendente e assustadora. Ela mostrou o papa Bento 16 discursando à Cúria Romana, com a seguinte mensagem: "salvar a humanidade do comportamento homossexual ou transexual é tão importante quanto salvar as florestas do desmatamento". Pode-se muito bem imaginar a indignação e o repúdio causados na opinião pública. Por se tratar de uma grave questão, convém analisar o que o papa realmente disse e a que conclusões se pode chegar.

No discurso de Bento 16, a Igreja preza a natureza do ser humano como homem e mulher e quer que se respeite esta ordem da criação. Trata-se da fé no criador e da 'escuta da linguagem da criação'. Desprezar esta linguagem leva o homem à destruição de si mesmo e da obra divina. O que com frequência se entende pelo termo 'gênero' é a autoemancipação humana em relação à criação e ao Criador. O homem quer fazer-se por sua conta, e decidir sozinho sobre o que lhe afeta. Mas deste modo vive contra a verdade, contra o Espírito criador. Os bosques tropicais devem merecer a nossa proteção, mas não menos o homem como criatura, no qual está inscrita uma mensagem que não contradiz a nossa liberdade, mas é sua condição. Grandes teólogos na história consideraram o matrimônio - o laço entre o homem e a mulher por toda a vida - como sinal sagrado da criação e da aliança entre Cristo e os homens. Faz parte do anúncio da Igreja, conclui o papa sobre este assunto, o testemunho a favor do Espírito criador, presente na natureza em seu conjunto e na natureza do homem criado à imagem de Deus.

Não se trata, portanto, do comportamento homossexual ou transexual, mas do conceito de gênero. Ele ameaçaria os papéis do homem e da mulher, decorrentes de criação divina, e o matrimônio heterossexual que o papa defende com ardor. No sentido clássico, 'gênero' é um termo que se refere à rede de crenças, traços de personalidade, atitudes e condutas que marcam a diferença entre homens e mulheres. Na recente teoria de gênero, não há uma coerência necessária entre sexo anatômico, identidade masculina ou feminina, desejo e prática sexual. 'Masculino' e 'feminino' não são substâncias originais nem essências universais, fixadas pelos corpos. Os atributos de gênero são regulados por diretrizes culturais, que estabelecem uma suposta coerência entre eles. Os corpos não têm nenhum sentido intrínseco.

A teoria de gênero é apreciada pelos que refletem sobre a diversidade sexual, pois permite pensar a realidade de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Esta realidade vai além do que apontam o sexo anatômico e a reprodução. A questão é eminentemente interdisciplinar, cabendo a abordagem de diversos saberes. As ciências, na sua legítima autonomia, têm algo relevante a dizer; bem como os que, como o papa, querem escutar a linguagem da criação e serem fiéis aos desígnios do Criador.

Na diversidade sexual, porém, não há escolha ou 'opção sexual'. Ninguém escolhe ser gay (e nem hétero). É uma condição, que corresponde à orientação sexual. A escolha é assumir-se ou não. Na natureza a homossexualidade já foi documentada em mais de 450 espécies animais. No ser humano, ela existe em todas as culturas conhecidas. Entre irmãos gêmeos univitelinos, se um é gay, o outro tem 70% de chance de ser também. E um documento do próprio Vaticano, de 1975, chega a falar da possibilidade da homossexualidade ser algo nato em certas pessoas. A medicina não mais a considera doença, e a psicologia hoje proíbe as terapias de reversão de orientação sexual. Portanto, algumas pessoas são homossexuais e o serão por toda a vida.

Para estas pessoas, a união heterossexual não é o caminho, como se pensou no passado e ainda hoje alguns insistem. Os gays não têm obrigação de se 'curarem' e de se casarem com pessoas de outro sexo. Até porque, para o direito eclesiástico, este matrimônio é nulo. Os gays tampouco são uma ameaça à união heterossexual, como se os héteros fossem gays enrustidos prestes a debandarem diante da possibilidade de união homo.

Ao se reconhecer as especificidades da diversidade sexual, pode-se ter uma outra escuta da linguagem da criação. As diversidades existem de múltiplas maneiras no mundo criado, oriundo da divindade que não se vê. Esta divindade única é formada por uma diversidade de pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo unidos desde toda a eternidade. No ser humano, a orientação sexual também é diversificada. A heterossexualidade não é universal. Quanto à teoria de gênero, ela seria uma emancipação humana em relação à criação caso houvesse 'opção sexual', em que o livre arbítrio do indivíduo neste campo prescindisse de qualquer determinação. Mas a realidade não é esta. Há coisas que antecedem qualquer escolha individual e remetem a uma complexidade maior.

Naqueles dias antes do Natal, outro fato importante envolveu a Igreja Católica e o mundo gay. Travou-se na ONU um debate sobre a descriminalização da homossexualidade em todo mundo, seguindo uma proposta encabeçada pela França. Nações ocidentais se posicionaram a favor e nações islâmicas contra. A delegação da Santa Sé, ainda que divergindo parcialmente da proposta francesa, manifestou-se pela condenação de todas as formas de violência contra pessoas homossexuais. E urgiu as nações a tomarem as medidas necessárias para pôr fim a todas as penas criminais contra eles.

Fica evidente que para a Igreja o comportamento homossexual não é uma ameaça para a humanidade. Convém lembrar que em séculos passados a prática do homoerotismo era crime. Havia até pena de morte para a 'sodomia'. A hierarquia católica, através da Inquisição, julgava os acusados e encaminhava os culpados ao poder civil para serem punidos. O mundo e a Igreja viveram enormes transformações até o presente. Este processo de mudança precisa continuar, para que se busquem melhores maneiras de se conviver com a diversidade sexual.

O discurso do papa à Cúria Romana foi um balanço do ano de 2008. Bento 16 mostrou um importante apreço pela diversidade ideológica e religiosa. Mencionou um rabino de Israel e um patriarca ortodoxo que discursaram no sínodo dos bispos católicos sobre a Bíblia. E citou o filósofo ateu Nietzsche: "A habilidade não está em organizar uma festa, mas em trazer pessoas capazes de suscitar alegria". Assim fica claro que algumas perspectivas fora da Igreja podem enriquecê-la, desde que o cristão não repudie alguém simplesmente por seu rótulo de ateu ou de agnóstico.

Para se escutar a linguagem da criação sobre a diversidade sexual, é preciso ir muito além de uma breve enunciação da teoria de gênero. As perspectivas do mundo secular podem ajudar bastante. Ninguém terá respostas adequadas sem um diálogo aberto e constante entre diversas posições. As manchetes equivocadas atrapalham e são obstáculos a serem vencidos. Assim as luzes da razão podem trazer fecundidade ao pensamento e alegria aos filhos de Deus.

Luís Corrêa Lima é padre jesuíta e historiador (Artigo Publicado em 2008)
Fonte

Imagem: Davi de Donatello

A mensagem do Papa

É natural que a mensagem do Papa machuque os gays e provoque indignação, ainda mais, neste momento em que comemoramos o Natal. Mas, não podemos esquecer que o Papa é a voz da hierarquia e que todos nós temos a responsabilidade por sermos a igreja que nós gostaríamos uns para os outros. Muito nos entristece que a mensagem do Papa contribua para aumentar a confusão que já existe na cabeça de tantos jovens que procuram conciliar sua fé católica e sua sexualidade. É certo que o Papa não intenciona afastar os homossexuais da igreja, mas infelizmente, sua declaração pode contribuir para isso. Já sabíamos desde o início do seu papado qual era a postura do Papa Bento XVI, ainda assim, não podemos deixar de nos sentir afetados por declarações como esta. Nossa mensagem neste Natal é que o maior mandamento de todos é o amor e é isso que desejamos para todos, independente de crenças e orientações sexuais, que esse seja uma Natal de muito amor e paz para todos!

O Evangelho traduzido em obras no mundo atual.

A defesa dos direitos gays feita por Hillary Clinton. É o Evangelho traduzido em obras no mundo atual.

Casamento para todos, um avanço humano


Em vez de se interrogar abstratamente sobre supostas desordens antropológicas de uma abertura do matrimônio aos homossexuais, não seria melhor colocar todos os nossos esforços sobre a desordem antropológica de uma sociedade cujas formas de consumo, de produção e de partilha são tão pouco respeitosas à pessoa humana e à sua dignidade?

Publicamos aqui a declaração da revista francesa Témoignage Chrétien, 14-12-2012, sobre a lei do casamento para todos, por ocasião das manifestações dos dias 16 de dezembro de 2012 e 13 de janeiro de 2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A homossexualidade foi perseguida ou oprimida durante longos séculos. Na realidade, trata-se de uma orientação sexual tão legítima e digna quanto a heterossexualidade.

O matrimônio é um contrato escolhido por duas pessoas mais livres e conscientes hoje do que jamais o foi. É um contrato que pode ser rompido ou renovado legalmente. Há famílias que se fundamentam fora do casamento, e 40% das crianças nascem fora do casamento.

Rejeitar esse contrato aos homossexuais seria acrescentaria uma enésima discriminação àquelas dos quais eles já foram objeto muito frequentemente. É por isso que consideramos justo que ele seja aberto àqueles – homens e mulheres – que querem dar um quadro lícito mais forte para a sua união.

Caberá às religiões refletir sobre o sentido do casamento religioso, mas seria um grave erro político colocar um contra o outro. Lembremos, enfim, que as mesmas pessoas que se orgulham das virtudes da união civil hoje, depois de terem rejeitado o PaCS [Pacto Civil de Solidariedade], muitas vezes com as mesmas palavras, são os primeiros responsáveis por uma radicalidade gerada pelo seu fechamento às liberdades individuais. Esperamos que a lição sirva.

Não acreditamos que o casamento para todos irá dissolver a sociedade. O divórcio não fez com que o casamento desaparecesse. Um número muito grande de divorciados se casa novamente. Se o casamento para todos é um modo de integração suplementar na sociedade, então não é preciso hesitar.

Consideramos que o projeto de lei atual constitui um avanço real. Distinguimos a conjugalidade, a parentalidade e a filiação. O direito de toda criança de conhecer as suas origens e a sua filiação é um direito essencial, exceto pela impossibilidade ou no caso de força maior de natureza patológica.

Enfim, pedimos a todos que abram os olhos para uma realidade que é a solidão de milhões de pessoas, em situação de indigência material, afetiva e psicológica às vezes terrível. Em vez de se interrogar abstratamente sobre supostas desordens antropológicas de uma abertura do matrimônio a uma parte necessariamente reduzida da população, não seria melhor colocar todos os nossos esforços sobre a desordem antropológica, bem real desta vez, de uma sociedade cujas formas de consumo, de produção e de partilha são tão pouco respeitosas à pessoa humana e à sua dignidade?

A humanidade cresce quando os cidadãos se recusam a sacralizar os laços de sangue e dão a precedência aos laços de fraternidade que os unem. Assim, o que os une, mesmo dentro da família, procede da adoção. Cristo na cruz dizia a João: "João, eis aí a tua mãe", e à sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho". Não é a paternidade biológica, não são os laços de sangue que nos tornam irmãos e irmãs. O nosso DNA único e comum é um amor fraterno que desloca as fronteiras dos nossos preconceitos e dos nossos medos para mais longe.

Fonte

domingo, 16 de dezembro de 2012

Pedro Casaldáliga, alvo dos latifundiários


Bispo ameaçado de morte por defender terras dos índios fala de resistência à ditadura, guerrilha, teologia da Libertação, Dilma e pós-capitalismo

Por Ana Helena Tavares*

Desde a semana passada, o bispo Dom Pedro Casaldáliga não vive mais em sua residência de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Escoltado por policiais federais, ele – que se recusou a se manter em casa sob a proteção da PF – foi embarcado em um avião que o levaria a mais de mil quilômetros dali, em endereço sigiloso. Motivo: a intensificação das ameaças de morte que vem recebendo dos invasores da Terra Indígena Xavante Marãiwatsédé, no Mato Grosso. Na semana passada, em um bar de São Félix, um homem anunciou que Dom Pedro “não passaria” daquela semana.

Na década de 60, sob o governo militar, os Xavante foram expulsos de suas terras para que elas fossem ocupadas por grandes projetos agropecuários. A área foi depois comprada pela italiana Agip, que, com o sopro dos ventos democráticos, anunciou durante a Eco-92 que a devolveria aos índios. Mesmo sabendo que eram terras indígenas, contudo, latifundiários, políticos e comerciantes da região ocuparam a área e instalaram ali um povoado e seus negócios. Depois de esperar durante 20 anos pelo cumprimento de uma ordem ministerial, e de ver negados pela Justiça Federal, na última semana, dois recursos que tentavam adiar a saída dos invasores, a desocupação foi iniciada nesta segunda-feira – daí a intensificação das ameaças.

Aconselhado pelo governo, amigos e integrantes da Pastoral a deixar sua residência por um tempo, esse catalão de 84 anos, que sofre do mal de Parkinson, é o rosto internacionalmente mais visível da luta dos Xavante pela desocupação de suas terras. Movimentos sociais nacionais e da região não param de manifestar apoio a Dom Pedro. A Rede Cáritas divulgou nota de irrestrita solidariedade assinada por 15 entidades, entre elas a Prelazia e outros grupos da região de São Felix, o CIMI de Brasília, a CPT de Goiânia. Em reportagem publicada no jornal La Vanguardia, de Barcelona, Espanha, a Associação Araguaia com Casaldáliga pede à comunidade internacional que ajude a zelar pela segurança de Dom Pedro e pelos direitos dos Xavante. (I.C.)

A voz é baixa, o corpo já não permite lutar no front, mas a lucidez do catalão D. Pedro Maria Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, é capaz de constranger. Por várias vezes quase assassinado, devido à sua opção pela defesa dos pequenos e o conflito com os grandes, D. Pedro ainda recebe ameaças.


Para ele, todos os partidos e governos têm três dividas com o povo: A da Reforma Agrária – reforma que “não há, não há, não há…”, a da Causa Indígena – “os índios sobram frente ao agronegócio” – e a dos Pequenos Projetos – “a obsessão pelos grandes projetos é marca do governo atual”.O QTMD? viajou ao Araguaia para ver e ouvir de perto um pouco da história deste homem que optou por viver “descalço sobre a terra vermelha”. “’Descalço’ quer dizer sem consumismo. ‘Sobre a terra vermelha’. Uma terra ensopada de suor,… Mas também ensopada de sangue”, definiu Casaldáliga.

O bispo, que enfrentou a repressão do regime militar, lembrou que “Jesus enfrentou as forças do Império Romano”, e falou sobre Comissão da Verdade, lamentando a falta de punição aos torturadores: “A memória histórica tem que servir de lição”, sublinhou.

Recebido por tochas

“Eu cheguei em 1968 ao Rio de Janeiro (onde ficou cerca de 4 meses). Saímos de Madrid a 11 graus abaixo de zero e chegamos ao Rio de Janeiro a 38. Tinha aquelas tochas do aeroporto para a cidade. Umas tochas acesas… Eu ainda estou vendo… Aquele calor, com aquelas tochas… Passamos uma noite sem dormir.”



“Há muitos Brasis”

“E depois, em Petrópolis, eu fiz um curso que tem a Igreja Católica no Brasil para missionários que vêm de fora. Para estudar a língua e ter uma noção de história do país. Da Igreja no país. E foi providencial. Porque, na época da ditadura militar, se tivéssemos chegado diretamente, da maneira como nós chegamos (foto), para São Félix do Araguaia… Nós estaríamos perdidos. Completamente despistados, sem saber da situação verdadeira… As causas da situação. As migrações: por que motivo? A história do país. Que há muitos Brasis…”.

Sete dias de caminhão

“Foram quase sete dias de caminhão de São Paulo até aqui (São Félix do Araguaia). Porque a estrada estava se abrindo, não tinha estrada. As pontes eram pequenas. Tinha muitos córregos… Agora, quando se faz o caminho de Barra do Garças para cá, não se tem nem idéia de como era a região.”

“Cadê a mata do posto?”

“Está tudo desmatado. Os córregos todos profanados, alguns deles secos já perderam toda a vitalidade. Tinha mata… Se fala do Posto da Mata… Cadê a mata do posto?”

“Terra de ninguém”

D. Pedro Casaldáliga chegou ao Brasil em janeiro de 68, portanto antes do AI-5 (que foi em dezembro do mesmo ano), mas garante: “já era clima de ditadura tensa”. E São Félix do Araguaia era, segundo ele, “um lugar onde o Estado não estava presente. Terra de ninguém.”

“Conflito com a política oficial”

D. Pedro lembra que, em 68, “começavam a vir as grandes fazendas com os incentivos fiscais da SUDAM.” E prossegue: “Automaticamente, para nós, a convivência com os pobres, pelo povo e pelos pequenos, significava entrar em conflito com o latifúndio. Entrar em conflito com a política oficial.”



“Estavam de um lado os índios, os posseiros, os peões… Do outro, os fazendeiros, a polícia, o Exército, o governo, o Estado… Logo, quase bem do início, já percebemos que a luta seria essa. Se nos posicionávamos do lado do povo, entrávamos em conflito com a política oficial.”

A guerrilha

“Aqui não teve guerrilha. A guerrilha foi no sul do Pará e no norte de Goiás. Só que para a repressão nós éramos guerrilha. Porque não conseguiam entender que uns estrangeiros se enfronhassem nesse mundo onde não tinha comunicação de jeito nenhum. Infraestrutura nenhuma… E rapazes novos que deixassem os estudos, o emprego e viessem para cá para não ganhar nada praticamente, só podiam ser guerrilheiros ou respaldo da guerrilha. Por isso, tivemos a repressão em cima… Sempre.”

“Diálogo de surdos”

“Foram presos muitos agentes de pastoral. Torturados. As presidências da CNBB foram muito solidárias conosco. E tivemos possibilidade de discutir com as autoridades por esse respaldo da CNBB. Só que era um diálogo de surdos.”

“Veio, em 1972, o ministro da Justiça da época. (Alfredo) Buzaid, ministro da Justiça (governo Médici). Estive com ele. Discutimos… Ele prometia o que não queria dar. Se impressionou no máximo pelo início da Reforma Agrária. Pelos sucessos de Santa Terezinha dentro da região.”


“Um grito!”

“E no dia da minha sagração (foto), lançamos uma carta pastoral. “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social.” E foi um grito! Porque escrevíamos dando nomes aos bois… Isso provocou mais presença da repressão.”

“Ação Cívica e Social do Exército”

“Nós tivemos aqui na região quatro operações da ACISO. “Ação Cívica e Social do Exército.” Que vinha para esses interiores arrancar dentes e consultar… Vinham de fato inspecionar. Porque abrangia a área estrita da Prelazia.”

“Vasculhavam as nossas casas… Exigiam a prisão… Levavam os agentes de pastoral presos e torturados para o Quartel do Exército de Campo Grande. Porque tudo era suspeito… Havia um clima de terror nessas regiões todas.”

“O povo foi torturado como cúmplice”

“Muitos anos depois, o povo se sentia livre para agir, para conversar. Em certas celebrações que tivemos, ainda havia uma reticência. Porque, além dos guerrilheiros que foram mortos, o povo foi torturado, maltratado como cúmplice… Os guerrilheiros tinham criado amizades, alguns eram médicos, professores.”

“Os índios sobram frente ao agronegócio”

Quanto aos índios, “já era uma atitude que continuava a política toda da colonização… Os índios sobravam. E estamos no mesmo problema… Sobram frente ao agronegócio. Porque a política indígena, a cosmovisão indígena, a cultura indígena, a economia indígena… É contrária à política e à economia do agronegócio. Por isso, eu dizia que tivemos problema na defesa desses três grupos de pessoas Os povos indígenas, os posseiros e os peões.”

“O problema é ter medo do medo”

“Detectamos o trabalho escravo. E o denunciamos… Foi aqui onde primeiro se denunciou o trabalho escravo.” Perguntado se em algum momento teve medo de morrer, o bispo do Araguaia não hesitou:

“Vários! Ainda agora, por exemplo… Essa situação dos intrusos, os que comandam a intrusão (de terras indígenas, clique aqui para conferir reportagem do QTMD? sobre o assunto). Acham que a culpa principal é minha por eu ter defendido esses índios.”

“Mas (na ditadura) éramos todos ameaçados… Eu tenho uma significação por ser bispo. Lógico… Eu digo sempre que o problema não é ter medo… O problema é ter medo do medo, (porque o medo) é uma reação defensiva.”



A morte do padre Burnier

Casaldáliga e o padre João Bosco Burnier, assassinado por um policial, estavam numa delegacia para defender mulheres torturadas. Uma delas é a que aparece na foto ao lado, observada por Casaldáliga, de óculos. Aquela foi uma das quatro ocasiões em que o bispo foi quase expulso do Brasil.

“O povo de Ribeirão Cascalheira derrubou a cadeia e a delegacia. Disseram que eu estava comandando esta derrubada da cadeia… Cadeia funcionando… E que podiam pedir a minha expulsão. Eu precisamente tinha saído rapidamente a Goiânia levando a denúncia da morte do Padre João Bosco (Burnier) e eu já não estava (em São Félix).”

As três dívidas dos governos com o povo


“Não há… Não há… Não há Reforma Agrária.”, enfatiza Dom Pedro Casaldáliga. “A Reforma Agrária supõe Reforma Agrícola também. Uma política a favor da Agricultura Familiar. Um acompanhamento dos assentamentos. Se tem feito alguns acordos… Mas não entram no que eu digo…”

“Eu digo que esses partidos, esses governos todos têm três dívidas: a da Reforma Agrária; a da Causa Indígena; e a dos Pequenos Projetos. De Agricultura Familiar, de Mini-Empresas… Têm essa dívida.”

“E com o capitalismo neoliberal… Com a política da exportação… Se confirma que esses países da América Latina e o Brasil, particularmente… Estão destinados a serem exportadores de matéria prima. É uma política contrária completamente às necessidades do povo.”

“O povo tenta fazer (a Reforma Agrária)… O MST e outras forças populares tentam gestos da Reforma Agrária. Mas a política oficial não é da Reforma Agrária. Insistindo: o que se pede é uma Reforma Agrária que seja uma Reforma Agrícola também. Porque terra é mais do que terra! Para o índio, sobretudo, é o habitat.”

“O bispo Pedro é comunista”

“Nós éramos comunistas, aqui na região, na Prelazia. E se deram casos pitorescos. Numa ocasião (na ditadura militar), a polícia lá em Santa Terezinha dizendo que: “O bispo Pedro é comunista”! Um dos camponeses falou: ‘Eu não sei o que é comunista. Agora, se comunista é ser da comunidade, trabalhar para a comunidade, o bispo Pedro é comunista’”.

“Os primeiros socialistas se inspiraram no Evangelho”

“No problema da justiça e da igualdade, estamos na mesma. Por motivos filosóficos, históricos e de fé… Também se diz: “Estamos no mesmo barco.” E, em certa medida, é verdade. Estamos no mesmo barco, mesmo que nós acrescentemos o motivo da fé. A procura da justiça social, da fraternidade universal… Os primeiros socialistas se inspiraram no Evangelho.”

“Dialético, marxista, humano”

“Por outra parte, se critica a Teologia da Libertação de ser marxista. Não é marxista. Porque existem categorias que são comuns… Dizer que os ricos cada vez mais ricos à custa dos pobres cada vez mais pobres… Isso é dialético! É marxista! É humano! Uma consideração humana da realidade dá esse resultado: que os ricos são cada vez mais ricos à custa dos pobres cada vez mais pobres.”

Socialização: a prerrogativa para a paz

“Quando fomos investigados aqui (na ditadura militar)… A Polícia Federal me parou e perguntava sobre socialismo. Eu dizia: se querem falar de socialismo, vamos falar de socialização. Se não se socializa a terra… A terra do campo e a terra urbana. A saúde, a educação, a comunicação… Se não se socializa esses bens maiores, essenciais… Não haverá paz.”

“Como Jesus optou…”

“Há um passado, um presente e um futuro (para a Teologia da Libertação). E, em todo caso, toda verdadeira teologia tem de ser Teologia da Libertação. A teologia cristã tem que optar pela igualdade fraterna da humanidade. Tem que optar pelos pobres, pelos pequenos, pelos marginalizados. Como Jesus optou.”

“Enfrentando, se preciso, as forças do poder. Como Jesus enfrentou as forças do Império Romano. As forças de uma religião utilizada… As forças do latifúndio na Palestina. Então… Um cristão que queira ser cristão de verdade tem que fazer essas opções. Isso chamamos de Teologia da Libertação.”

“A memória histórica tem que servir de lição.”

D. Pedro Casaldáliga concorda que se investiguem as violações dos direitos humanos que tenham ocorrido entre 1946 e 1988, como está fazendo a Comissão da Verdade. “Eu acho que é bom que se abranja também essa outra área.”

“Porque o perigo de torturar fisicamente e psicologicamente está nas mãos de todos os governos que sejam mais ou menos ditatoriais. A ditadura foi o momento alto dessa repressão… Desse abuso de poder. Mas devemos prevenir para qualquer outro momento.”

O bispo, porém, discorda da falta de punição aos torturadores: “Deveriam ser punidos. A memória histórica tem que servir de lição. Não pode ser apenas evocar estaticamente uns heróis e uns torturadores. Vários países da América Latina têm dado o exemplo disso”.

América Latina: “Pátria Grande”

Casaldáliga considera que a América Latina “está melhor hoje do que ontem. Porque temos governos mais ou menos de esquerda. Porque há uma maior consciência de que somos um continente.”

“Uma “Pátria Grande”, como diziam os libertadores. “A nossa América”, diziam eles também. Eu digo sempre que a América Latina e o Caribe ou se salvam continentalmente todos ou não se salvam. Tem que ser uma comunidade de nações, porque temos uma característica especial.”

“Paixão latino-americana”

“Já, em parte, se está conseguindo que a América Latina não seja tão abertamente o quintal dos Estados Unidos. Se está dando passos importantes. Quando se fala da Venezuela, eu digo que, com os erros de Hugo Chávez, tem umas contribuições significativas. Uma delas é essa paixão latino-americana.”

“O Brasil é outra coisa”

“Custou o Brasil tomar consciência de que somos América Latina. Pelo idioma… Por uma certa atitude hegemônica… Que, às vezes, não é suficientemente controlada… O Brasil é outra coisa.”

Não acredito, mas…

O bispo não acredita em novo golpe. Ao menos, não nos moldes do que ocorreu em 64. “Nem aqui nem em outros lugares da América Latina. Mas há outros tipos de golpes… Por isso, é bom prevenir… Para que as ditaduras não sejam camufladas… Podem ser ditaduras militares, podem ser ditaduras civis também…”

Os “outros tipos de golpes”…

“O governo do Paraguai não é legítimo, o governo de Honduras não é legítimo. Evidente. São golpes de Estado, são ditaduras camufladas a serviço dos interesses do Império. (o grande capital) Que agora é menos expressivamente dos países… A globalização os tem metido a todos no mesmo saco.”

“O nosso DNA é ser raça humana”

“Por outra parte, há um cenário, uma nova consciência de sermos uma unidade. Somos a família humana. Agora não se pode prescindir do resto do mundo. Sempre temos dito que o pecado dos EUA é se considerar como ele só no mundo. E o resto é resto.”

“Agora com a globalização e suas malezas, e seus abusos… Tem se aberto um espaço… Uma unidade. A característica primeira é de ser humanos…”

“Eu digo que o nosso DNA é ser raça humana. Família humana. Existem (“raças”) como identidade. Mas, dentro dessa identidade, primeiro é o fato de ser humanos. E toda a verdadeira política se devia dedicar a humanizar a humanidade.”

“Capitalismo com rosto humano é impossível”

Perguntado se há possibilidade de haver uma verdadeira democracia dentro do capitalismo, o bispo do Araguaia foi enfático: “Não! O capitalismo é nefasto. E não tem solução… O capitalismo é o egoísmo coletivo. É a segregação da imensa maioria. É o lucro pelo lucro. É a utilização das pessoas e dos povos a serviço de um grupo de privilegiados. Quando se trata de um “capitalismo com rosto humano” se está pedindo o impossível. É impossível.”

“A democracia é uma palavra profanada.”



” Os povos indígenas, dentro destes Estados democráticos… São coibidos. São marginalizados”. Foto: arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia.

Para D. Pedro Casaldáliga, não há democracia verdadeira em lugar nenhum do mundo. “Porque se tem uma democracia formal… Uma democracia, entre aspas, política. Mas não se tem democracia econômica… Não se tem democracia hênica (étnica). Os povos indígenas, dentro destes Estados democráticos… São coibidos. São marginalizados. Se vêem obrigados a reivindicar os direitos que são elementares para eles. A democracia é uma palavra profanada.”

Quem tem medo da democracia?

“Da verdadeira democracia… Têm medo todos aqueles que continuam defendendo privilégios para umas pessoas… Privilégios para uns poucos.”

“Todos aqueles que fazem da propriedade privada um direito absoluto.”

“Todos aqueles que não entendem que a propriedade tem uma hipoteca social.”

“Todos aqueles que considerem que podem existir pessoas, governos e Estados que vivam de privilégio à custa da dominação e da exploração…”

“Não há liberdade de imprensa”

“A grande mídia é a mídia dos grandes. Com isso está dito tudo… Não há liberdade de imprensa. Eu tenho visto jornalistas chorando de raiva porque fizeram matéria e o editor tergiversou (distorceu) tudo praticamente… Colocando o título tal e tergiversa (distorce) tudo o que foi dito no texto. Sim. Sim. Tem tido casos assim.”

Governo Dilma: “obsessão pelos grandes projetos”

“A crítica que eu faço é dessas três dívidas: A dívida da Reforma Agrária. A dívida da Causa Indígena. E a dívida dos pequenos projetos. Se faz os grandes projetos… Belo Monte. São Francisco. Hidrelétricas… Grandes projetos… O Brasil é destinado a ser uma grande fábrica a serviço deles.”

“Um índio Carajá dizia uns anos atrás… Numa coletiva de imprensa na Europa: “Eu acho que o nosso governo está mais interessado em engordar os porcos de obra…” “Do que em cuidar do seu povo…” Engordar os porcos… Sem recolher a soja… Fazer da soja a grande exportação. Há uns atrás ele falava… Mas ainda devemos dizer que essa obsessão pelos grandes projetos… Define em grande parte o governo atual.”

A política internacional vai bem

“Eu reconheço a história da Dilma. Reconheço as ações de solidariedade que ela está fazendo… A atitude que se tem adotado com respeito ao Paraguai… A atitude que se tem adotado com respeito à Venezuela… A atitude que se tem adotado quando se trata de defender o direito dos povos. Se Equador toma uma decisão, ela é acolhida ou respaldamos. Sim (a política internacional vai bem). Pela primeira vez se fez uma política, que buscava a independência com respeito aos EUA.”

“Descalço sobre a terra vermelha”

Quando o QTMD? esteve em São Félix do Araguaia, estava sendo rodado um filme sobre D. Pedro Casaldáliga, baseado em livro homônimo. O homenageado se opunha, mas depois acabou permitindo.


“Eu me opunha de todo jeito. Porque eu tinha medo de duas coisas: que se partisse para o pedantismo… O culto da personalidade. E também que não se destacassem bastante… As nossas causas. Por que estamos aqui? O que defendemos aqui? Por que temos assumido essas atitudes?”

“Isso de um modo comunitário. Porque não tem sido eu… Tem sido essas equipes de pastoral… Tem sido o movimento popular. O povo da região… Que tem lutado, que luta, para vingar seus direitos.”“Eu fiz questão de não interferir. Deixar liberdade absoluta. Sem censura. Criticamos a censura, eu não vou fazer censura agora…”

“Tem uma vantagem, acho, o filme… Ajudará a evocar uma memória que não estava viva, sobretudo, na juventude… Do governo daquela época. Poderão agora descobrir um passado, que afeta o presente e o futuro.”

“’Descalço’ quer dizer sem consumismo. Despojado, sem consumo. ‘Sobre a terra vermelha’. Uma terra ensopada de suor,… Mas também ensopada de sangue. Sangue mártir.”, finalizou o bispo.


*Ana Helena Tavares é editora do site “Quem tem medo da democracia?“

Imagem: D. Pedro Casaldáliga no dia em que foi sagrado como bispo. Foto: arquivo da Prelazia de São Félix.

Fonte

Casaldáliga deveria ser papa, mas – de novo – está ameaçado de morte


Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia e um dos maiores defensores dos direitos humanos no país, mais uma vez está marcado para morrer Aos 84 anos e doente, teve que deixar sua casa em São Félix do Araguaia por conta das ameaças surgidas em decorrência do governo brasileiro, finalmente, ter começado a retirar os invasores da terra indígena Marãiwatsédé, Nordeste de Mato Grosso – ação que sempre foi defendida por ele.

Incentivados por fazendeiros e políticos locais, alguns grupos de invasores decidiram resistir à decisão judicial de sair e forçaram conflitos com as tropas, além de ameaçar lideranças.

Casaldáliga, junto com Tomás Balduíno, dois bispos engajados na luta pela dignidade no campo, serão homenageados, nesta segunda (17), na entrega do Prêmio Direitos Humanos 2012, em Brasília.

Joseph Ratzinger, em um discurso a bispos brasileiros na época da nossa última eleição presidencial, afirmou que “os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas”. Ou seja, Bento 16 pediu para que os representantes de sua igreja orientassem politicamente os fiéis. E seguiu o script esperado, condenando o aborto e a eutanásia e, implicitamente, a pesquisa com embriões para obtenção de células-tronco.

Todas as igrejas e suas chefias são livres para elencar seus assuntos mais importantes. Mas fico imaginando a pauta de preocupações se, ao invés de Joseph Ratzinger, fosse Pedro Casaldáliga o papa. E, ao se dirigir a bispos brasileiros, fizesse outro tipo de “juízo moral” em “matérias políticas”, retomando palavras que ele proferiu há tempos:

“Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e amar! Malditas sejam todas as leis amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois, fazerem a terra escrava e escravos os humanos.”

A Teologia da Libertação tem sido uma pedra no sapato de quem lucra com a exploração do seu semelhante. Na prática, esses religiosos católicos realizam a fé que a Santa Sé não consegue colocar em prática. Pessoas como Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno, Henri des Roziers, Erwin Klautler e Xavier Plassat que estão junto ao povo, no meio da Amazônia, defendendo o direito à terra e à liberdade, combatendo o trabalho escravo e acolhendo camponeses, quilombolas, indígenas e demais excluídos da sociedade.

Bento 16, no mesmo discurso, defendeu a solidariedade aos pobres e desamparados. Como ex-coroinha, fico pensando em que tipo de solidariedade ele estava falando? Da caridade? Uma ação pouco útil, que consola mais a alma daquele que doa do que o corpo daquele que recebe?

Ou da solidariedade de reconhecer no outro um semelhante e caminhar junto a ele pela libertação da alma e do corpo de ambos? Se for a primeira, ele está pregando a continuidade de uma igreja que ainda não consegue entender as palavras revolucionárias que estão no alicerce de sua própria fundação.

Se falou da segunda, a solidariedade como redenção do corpo e da alma, ele se referiu claramente à Teologia da Libertação.

Prefiro acreditar que ele estava falando da primeira, pois seria irônico a atual administração do Vaticano pregar algo que o catolicismo vem combatendo há tempos.

Enquanto isso, nossa realidade continua lembrando muito daqueles microcosmos de poder do Brasil profundo, presentes nas obras de Dias Gomes: o padre, o delegado e o coronel, amigos de primeira hora, tomando uma cachacinha na (ainda) Casa-grande, gargalhando da vida e discutindo sobre os desígnios do mundo, que – para eles – deveria ter a cara de seu vilarejo.

Leonardo Sakamoto

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A família, segundo Victor Hugo


“O que assistimos hoje não é uma revolução que conduziria ao desaparecimento da família, mas a uma evolução que, ao contrário, a pereniza: o desejo dos homossexuais de entrar na ordem procriativa, ou seja, na ordem familiar da qual haviam sido excluídos”. Intervenção de Elisabeth Roudinesco na Assembleia Nacional da França, a propósito do projeto de lei Casamento para todos, em debate no país.

A sociedade francesa debate no momento o projeto de lei do Executivo que autoriza o casamento entre pessoas do mesmo sexo e permite que homossexuais possam participar de programas de adoção. Em recente editorial, o jornal conservador Le Figaro afirmou que essa reforma do código civil vai transformar a estrutura familiar tal qual ela existe na França, "A noção de pai e mãe vai desaparecer do Código Civil e comprometer o futuro de milhares de crianças”, afirma o texto.

Assim como acontece no Brasil e em outras culturas, a proposta, ao colocar em jogo a noção de família, tem gerado grande ebulição – na França inclui até mesmo a realização de passeatas em Paris e em várias outras cidades, organizadas por setores conservadores.

Por compartilharmos as mesmas idéias a respeito de temas como “família” (e sua definição no plano antropológico, fundada não somente na diferença biológica de sexo, ou na presença obrigatória de um homem e de uma mulher, ou de um pai e de uma mãe) e o direito de casais homoafetivos de fundar uma família – e, portanto, se beneficiar, através do casamento, de direitos equivalentes aos de pessoas de sexos diferentes – reproduzimos abaixo o pronunciamento da historiadora da psicanálise e psicanalista Elisabeth Roudinesco na Comissão de leis sobre o casamento para todos, na Assembleia Nacional da França no dia 15 de novembro, a qual consultou os psicanalistas a propósito do projeto de lei a ser votado em 2013. Em sua intervenção, Roudinesco recorre a Victor Hugo – em Os Miseráveis – para falar aos parlamentares presentes do real significado de “parentalidade”. Texto traduzido por C. Lucia M. Valladares de Oliveira.


“Excelentíssimo Sr. presidente da Comissão de leis, Sr. Relator, senhoras e senhores parlamentares,

Gostaria de agradecer a honra que me outorgaram, convidando-me para esta sessão sobre um tema ao qual já dediquei muitos estudos enquanto historiadora sobre a família, sexualidade, psicanalise e psiquiatria. Permito-me também falar aqui como “testemunho”, posto que minha mãe, Jenny Aubry, pediatra, médica e psicanalista durante toda a sua vida tratou de crianças em sofrimento: crianças abandonadas, em orfanato, maltratadas, crianças doentes, crianças superdotadas, crianças aguardando adoção e filiação.

Sou favorável a essa lei e como muitos de meus colegas sociólogos, antropólogos e historiadores que os senhores já ouviram – penso em particular como Irene Théry – fiquei surpresa com a violência com a qual, novamente, os homossexuais foram estigmatizados em seu desejo de fundar uma família e, portanto, de beneficiar, através do casamento, de direitos equivalentes aos de pessoas de sexo diferente.

É possível compreender que os religiosos sejam contrários a esta mutação da questão do casamento, considerando que eles possuem uma visão imutável e essencialista da família, através da qual o pai permanece como o substituto de Deus e a diferença bio-anatômica dos sexos fundamenta todo o direito natural. Mas da parte de especialistas do tratamento psíquico que atendem famílias perturbadas, tal oposição me parece incompreensível, em particular quando eles se reivindicam daquilo que foi e é, na história da psicanálise, a concepção freudiana da família.

Em momento algum se encontrará na obra do fundador da psicanálise o que uma parte de seus herdeiros pretende detectar atualmente: o casamento homossexual seria o fim da família, seria uma denegação da diferença de sexos, uma desgraça para as crianças, condenadas a ter pais perversos, condenadas a ficar sem filiação, sem lei do pai separador, etc. Não somente Freud não considerava os homossexuais como seres não humanos, como, em seu tempo, manifestou claramente sua vontade de despenalizar esta forma de sexualidade. Não somente nem por um instante passou pela cabeça dele que a família pudesse se sustentar no primado da diferença biológica dos sexos – uma vez que esta é uma evidência e não uma construção – como aceitou que sua filha Anna criasse os filhos de sua companheira e considerou que se tratava ali de uma família: estas são as palavras dele. Portanto, não façamos Freud dizer o que ele nunca disse, exceto ao mergulhar em um anacronismo que todo historiador tem obrigação de criticar.

Na realidade, o que assistimos hoje não é uma revolução que conduziria ao desaparecimento da família, mas a uma evolução que, ao contrário, a pereniza: o desejo dos homossexuais de entrar na ordem procriativa, ou seja, na ordem familiar da qual haviam sido excluídos. Este desejo de normatividade que se observa há cerca de trinta anos é a consequência da despenalização da homossexualidade nas sociedades democráticas, mas também dessa hecatombe que foi a AIDS. Querer se reproduzir estando inscrito na ordem familiar é também um desejo de vida, de transmissão. E é esta aspiração à normatividade que incomoda os oponentes à lei porque no fundo, ainda que não homofóbicos, eles gostariam de manter hoje em dia a imagem do homossexual maldito encarnado por Proust ou Oscar Wilde: na visão deles o homossexual deve permanecer clinicamente perverso, ou seja, fora da ordem procriativa.

A abundância de culturas é, no entanto, suficientemente extensa para permitir uma infinita variedade de modalidades de organização familiar. De outra forma dita, deve-se admitir que, durante séculos manifestaram-se no interior de duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico (proibição do incesto e outras interdições), não somente transformações próprias à instituição familiar, como também modificações do olhar dirigido para ela ao longo de gerações. Uma vez admitida esta definição, cabe retomar a questão histórica. Fundada por muitos séculos na soberania divina do pai, a família ocidental se transformou em uma família biológica a partir do início do século XIX com o advento da burguesia que atribuía à maternidade um lugar central. A nova ordem familiar pôde então controlar o perigo que representava o lugar do feminino, ao preço do questionamento do antigo poder patriarcal. Do seu declínio, do qual Freud tornou-se testemunha e principal teórico, emergiu um processo de emancipação que permitiu às mulheres afirmar sua diferença – especialmente ao separar maternidade de desejo e procriação, e ao querer ter acesso ao trabalho –, tomar as crianças como sujeitos e não como imitações de adultos e aos homossexuais de se normalizar e de não mais ser considerados perversos. Esse movimento gerou angústia e desordem específicas, ligadas ao terror da abolição da diferença de sexos, com, no final do percurso, a perspectiva de uma dissolução da família. No final do século XIX, de fato temia-se que as mulheres, ao trabalhar, se tornassem homens e que a diferença de sexos fosse abolida. E hoje em dia, tem-se medo dessa mesma abolição que, nos dizem, viria dos homossexuais que também desejam fundar famílias.

Mas o que funda a família no plano antropológico não é somente a diferença biológica de sexos – o que aliás não envolve necessariamente a existência de um pai real e de uma mãe real, mas ambos de substitutos. É antes e, sobretudo, a proibição do incesto e a necessidade de troca: faz-se necessário as famílias para que a família exista e faz-se necessário a proibição para assegurar aquilo que nos diferencia do mundo animal: a passagem da natureza à cultura. E que eu saiba nunca os homossexuais criando filhos renunciaram a essa necessidade. E foi mais sobre essa questão que sobre a da diferença biológica que Freud aderiu em sua época às transformações da família ao aproximar as neuroses burguesas das tragédias antigas, ou seja, à interrogação de cada sujeito sobre sua origem: quem eu sou, de onde venho? Tal é a questão de Édipo de Sófocles. De que sou culpado? Tal é a questão de Hamlet, os dois heróis preferidos de Freud que de forma alguma criou uma psicologia familiarista. Quanto ao casamento, instituição especificamente humana e desde então laica, ele é a tradução jurídica, legal, de certo estado da família em uma época dada. Em nada imutável e sempre evoluindo, sempre em mutação como mostram também as revisões que o Código Civil sofreu desde a sua instauração na França em 1792. Em todos os lugares, nas sociedades democráticas, a instituição do casamento está em evolução como a família...

Para concluir, gostaria de dizer que o que destrói a família não é o desejo dos homossexuais de integrar a ordem familiar. Nunca é o desejo de fundar família, mas a miséria psíquica, material, moral, esta que vemos hoje e que conduz a derivas assassinas, ao terrorismo, ao sectarismo religioso. Miséria distinta de destinos trágicos próprios às dinastias reais que se destroem de dentro.

Victor Hugo enunciou em Os Miseráveis, livro que todos deveriam ler hoje nestes tempos de crise econômica e crise moral: o pai desempregado e explorado, a mãe escravizada, a criança vagabunda. Mas, sobretudo, gostaria de assinalar que esse mesmo Hugo, que ao longo de sua existência aderiu a todas as formas de parentalidade próprias à sua época – casamento por amor, adultério, pai, patriarca, avô, pai infeliz diante da loucura de uma filha e a morte de outra, pai amante do amor – forjou, através de Jean Valjean, um personagem célebre sobre o qual deveriam refletir todos aqueles que na essência argumentam que o bem-estar da criança exige a presença absolutamente necessária de um homem e uma mulher, de um pai e de uma mãe.

Resgatado da miséria, habitado pelo desejo do mal durante os dezenove anos que passou na prisão, e depois convertido por um religioso à vontade de fazer o bem, Valjean nunca tinha conhecido, aos 55 anos de idade, a menor relação carnal ou amorosa. Virgem, ele nunca tinha amado nem pai, nem mãe, nem amante, nem mulher, nem amigo.

Quando descobre através de Fantine, ex-prostituta, a existência de Cosette – criança mártir, humilhada pelos Thénardier –, ele vai procurá-la e torna-se seu pai, sua mãe, seu educador, seu tutor, enfim, o substituto de tudo que falta à criança sem amor: um único substituto que basta para assegurar então a felicidade futura da criança mais miserável da terra. Nove meses: o tempo de uma gestação. O coração do condenado, diz Hugo, está “repleto de virgindades” e, ao ver Cosette, ele sente pela primeira vez “um êxtase amoroso que vai ao desvario”. Imediatamente sentiu as fisgadas, ou seja, as dores do parto: “Como uma mãe, e sem saber do que se trata.” Literalmente, portanto, ele dá a luz a uma criança e o amor que ele sente é materno. Por sua vez, a criança, tendo esquecido o rosto de sua mãe, só tendo conhecido socos, só tendo amado uma vez na vida, não um humano, mas um animal – um cachorro – olha para esse homem que ela vai chamar de pai sem saber quem ele é e sem nunca saber seu verdadeiro nome. Ela vai amá-lo além de qualquer conhecimento da diferença entre uma mãe e um pai, como um santo, desprovido de sexualidade.

Atualmente, diante de pedopsiquiatras “especialistas”, assombrados pelo espectro da abolição da diferença de sexos, Valjean seria sem duvida visto como um pai mau ou uma mãe má, ou pior ainda, como um pedófilo.

Então, eu diria a todos aqueles que, em nome de uma impossível normalidade, fustigam as famílias monoparentais, homoparentais, “anormais”, divorciadas, que cada criança amaria tanto ter por mãe e pai a cada vez um Jean Valjean.”

Fonte: CLAM

Ressuscitar a missa pré-Vaticano II deixa a Igreja em uma encruzilhada


O missal de 1570 (a base do missal de 1962) foi, e continua sendo, uma liturgia em que os batizados – uma vez sujeitos da liturgia e cocelebrantes do sacrifício eucarístico – foram e são reduzidos a meros espectadores. Eles estão lá para assistir o padre dizer a "sua" Missa. A ênfase é hierárquica e legalista (quem tem o poder e como exerce legalmente esse poder).

A opinião é de Ron Schmit, pároco da St. Anne Church, em Byron, Califórnia, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado no sítio do jornal National Catholic Reporter, 08-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Foi a curiosidade e um senso de ironia que me levaram a abrir a edição do dia 1º de outubro do nosso jornal diocesano. Na capa, a manchete era "Seguindo em frente na fé", ao lado de uma foto do nosso ex-bispo vestido como um prelado de mais de 50 anos atrás. Essa era uma foto de uma liturgia na "forma extraordinária" (a missa em latim pré-Vaticano II de 1962), acolhendo um grupo de freiras carmelitas muito tradicionais na diocese.

Ultimamente, parece haver um crescente interesse por essa "forma extraordinária", em nosso jornal diocesano e entre alguns dos nossos clérigos. No passado, a minha atitude foi "e daí?". Se as pessoas gostam de antiquarismo, deixe-as gostar. Algumas pessoas gostam de passar fins de semana reencenando a Guerra Civil. Elas se vestem com trajes da época. Elas encenam simulações das batalhas dos soldados da União e dos confederados. É um passatempo inofensivo. Eu percebi, então, que as pessoas ligadas a essa "forma extraordinária" eram a versão litúrgica das sociedades de reencenação anacrônicas.

No entanto, eu tive que mudar a minha opinião. As pessoas ligadas à forma extraordinária não são como as sociedades de reencenação da Guerra Civil. Ao menos, estas pessoas sabem que estão brincando-atuando sobre um tempo que nunca pode voltar. As pessoas ligadas à forma extraordinária estão tentando seriamente decretar uma visão de mundo e uma compreensão particulares da Igreja. E essa é uma compreensão que deixamos para trás no Concílio Vaticano II . É uma visão de mundo que é incompatível com o Concílio.

A liturgia não tem a ver com gosto ou estética. É como a Igreja define a si mesma. Aqueles que rejeitaram o Vaticano II e a sua liturgia foram os primeiros a compreender a conexão entre a liturgia e a nossa autocompreensão como Igreja.

O Papa Paulo VI também entendeu isso. A rejeição da liturgia do Vaticano II é uma rejeição da sua eclesiologia e teologia. Em seu livro recém-publicado True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium, Massimo Faggioli narra a resposta de Paulo VI quando o seu amigo filósofo Jean Guitton perguntou por que não reconhecer o missal de 1962 ao separatista arcebispo Marcel Lefebvre e seus seguidores. Paulo VI respondeu:

Nunca. Essa Missa (...) torna-se o símbolo da condenação do Concílio. Eu não vou aceitar, em hipótese alguma, a condenação do Concílio através de um símbolo. Se essa exceção para a liturgia do Vaticano II fosse concedida, todo o Concílio ficaria abalada. E, como consequência, a autoridade apostólica do Concílio ficaria abalada.

Paulo VI sabia que permitir a velha forma seria não só divisivo, mas colocaria em dúvida todo o Concílio, e isso seria um pecado contra o Espírito Santo. Agora estamos experimentando o fruto infeliz da recente permissão para celebrar a forma extraordinária.

A definição de quem somos como Igreja ganha vida na liturgia. O Vaticano II descreveu a Igreja como um povo sacerdotal chamado a uma missão. Esse sacerdócio se enraíza no nosso batismo. Uma vez, o Papa João Paulo II foi perguntado sobre o dia mais importante da sua vida. Ele respondeu: "O dia em que eu fui batizado".

O batismo é a nossa participação na vitória de Cristo sobre a morte. Somos incorporados no mistério pascal do Cristo ressuscitado e agora participamos da vida de Deus. Que outro chamado maior pode haver? O casamento, a vida religiosa ou de solteiro e o ministério ordenado nada mais são do que formas específicas em que somos chamados a viver a nossa vocação batismal. É por isso que Santo Agostinho dizia ao seu povo: "Com vocês, eu sou batizado; por você, eu sou ordenado". O Concílio nos diz que o batismo chama todos à santidade.

A visão do Concílio de um povo sacerdotal em missão precisava de uma liturgia que pudesse preparar discípulos prontos para assumir as suas responsabilidades. O Concílio olhou para o passado distante da Igreja para recuperar os elementos rituais que foram fundamentais para preparar o batizado a assumir uma responsabilidade ativa da missão sacerdotal, profética e real de Cristo.

Em seu artigo Summorum Pontificum and the Unmaking of the Lay Church (Worship, julho de 2012), o estudioso Mestres Keightley, da Geórgia, identifica esses elementos recuperados da Igreja antiga pelo Concílio. Eles expressam o exercício ativo do povo sacerdotal de Deus: a oração dos fiéis, a procissão do ofertório e o beijo da paz. Eles eram sinais visíveis que expressavam o sacerdócio da Igreja. Esses sinais encarnam para o sacerdócio de todos os fiéis a missão de proclamar o Evangelho e de interceder pelo mundo e por todas as pessoas.

Ao longo do tempo, esses elementos foram perdidos ou ficaram obscurecidos. No momento em que chegamos ao Concílio de Trento (1545-1563), novas orações e ritos substituíram os ritos antigos. Keightley escreve:

Eles [as novas orações e ritos] não deram nenhum espaço para as intercessões dos leigos pelo mundo e por seu povo. Desapareceu qualquer sinal visível da oferta sacrificial de si mesmo que ganha forma naqueles esforços diários para acolher o estrangeiro, cuidar dos pobres e administrar os recursos da Terra. Também não havia permissão para aquela expressão sincera do companheirismo e da comunhão que a Igreja afirma celebrar e testemunhar. Com o seu desaparecimento, uma dimensão importante da liturgia também recuou, isto é, a apreciação da Igreja primitiva pela Eucaristia como um sacrificium laudis (sacrifício de louvor).

A liturgia que surgiu a partir da Idade Média e de Trento colocava uma ênfase diferente sobre a liturgia eucarística. O foco não estava na preparação de todos os batizados para a missão, mas sim no poder do ordenado de transformar pão e vinho. A ideia da "reconstituição incruenta do sacrifício da cruz" empurrou a "ação de graças pela criação e a consagração do mundo" para as margens da teologia eucarística. O poder do clero de tornar Cristo presente na Eucaristia ofuscou o poder da Eucaristia de transformar os batizados – equipados para tornar Cristo uma presença real no mundo através de suas vidas cotidianas. Keightley novamente:

Isso não só introduziu uma profunda divisão entre criação e redenção, mas também deu origem a uma espiritualidade laical focada estritamente na futura salvação do indivíduo, negligenciando os deveres eclesiais sacerdotais da pessoa pela renovação da criação aqui e agora.

O missal de 1570 (a base do missal de 1962) foi, e continua sendo, uma liturgia em que os batizados – uma vez sujeitos da liturgia e cocelebrantes do sacrifício eucarístico – foram e são reduzidos a meros espectadores. Eles estão lá para assistir o padre dizer a "sua" Missa. A ênfase é hierárquica e legalista (quem tem o poder e como exerce legalmente esse poder).

Em vez do Cristo ressuscitado que atua através de todo o povo de Deus (leigos e ordenados), temos um clero poderoso que ministra a um povo passivo. Em vez da Igreja como sacramento, temos a Igreja como uma hierarquia jurídica.

A tentativa de ressuscitar e popularizar a Missa pré-Vaticano II de 1962 tem sérias ramificações. Será que vamos ser uma Igreja que olha estritamente para dentro – onde Deus só é encontrado na piedade e na devoção privada, ou seremos uma Igreja como o Vaticano II a definiu – um povo cheio do fogo do Espírito com um urgente sentido de missão? Estamos em uma encruzilhada. A forma extraordinária é incapaz de nos ativar como povo sacerdotal de Deus – a visão do Vaticano II. Qual caminho iremos seguir?

Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz foram grandes reformadores da Contrarreforma católica. Assim como os participantes do Vaticano II, eles tentaram reformar a sua comunidade retornando para as fontes e restaurando a prática religiosa (descalça) que se tornou obscurecida ao longo do tempo. Eles também tiveram que lutar contra aqueles que combatiam as reformas que eles estavam iniciando. Precisamos da sua intercessão para perseverar no aggiornamento (atualização) que o Papa João XXIII inaugurou convocando o Concílio.

A perseverança irritável e alegre de Santa Teresa de Ávila está refletida em uma das frases dela que eu mais gosto: "De devoções absurdas e santos amargurados, livra-nos, Senhor!".

Amém.

Fonte UNISINOS

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sábado, 8 de dezembro de 2012

Como alcançarei essa felicidade? Um caminho para felicidade


2000 anos após o evento da Páscoa, nós somos sempre convidados a entrar no deserto e a caminhar, pois a nossa libertação ainda não está concluída. Não é por nada que a cada ano vivemos este tempo do Advento que nos prepara para celebrar o Natal, a festa por excelência de Cristo Ressuscitado que quer renascer ainda hoje, através de nós, a fim de nos libertar definitivamente.

A reflexão é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 2o Domingo de Advento (9 de dezembro de 2012). A tradução é de Susana Rocca.

Eis o texto.

Referências bíblicas:
1a leitura: Br 5,1-9
2a leitura: Fl 1,4-6.8-11
Evangelho: Lc 3,1-6

Na semana passada começamos o Advento C com as palavras de Jesus, do final do evangelho de Lucas, sobre a sua vinda (Lc 21). Hoje, neste 2o Domingo de Advento, voltamos ao começo do evangelho de Lucas, onde o autor nos anuncia uma Boa Nova: “E todo homem verá a salvação de Deus” (Lc 3,6). Contudo, há uma condição: para ser acolhido, a salvação pede a conversão. Mas em que consiste essa conversão? Vamos vê-lo, na semana próxima, no 3o domingo de Advento. Mas, hoje, como vamos nos preparar a partir dos textos bíblicos que nos são propostos?

1. Ir ao deserto. Os evangelistas Marcos, Mateus e Lucas nos convidam a ir ao deserto para compreender a palavra do profeta João Batista, que anuncia a vinda de um novo mundo, através de Jesus de Nazaré, que conhecemos como Cristo e Senhor na Páscoa, porque os três evangelhos foram escritos após a Páscoa. Por outro lado, cada um o faz de forma diferente. Marcos diz simplesmente: “João Batista apareceu no deserto, pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados” (Mc 1,4). Mateus diz somente: ”Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judeia. ‘Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo’” (Mt 3,1-2). Lucas, por sua vez, situa o personagem de João Batista na história mundial, pois é a história do mundo que está em jogo: “Fazia quinze anos que Tibério era imperador de Roma. Pôncio Pilatos era governador da Judeia; Herodes governava a Galileia; seu irmão Filipe, a Itureia e a Traconítide; e Lisânias, a Abilene. Anás e Caifás eram sumos sacerdotes. Foi nesse tempo que Deus enviou a sua palavra a João, filho de Zacarias, no deserto” (Lc 3,1-2).

O que quer dizer que, para Lucas, a palavra de Deus se exprime não através dos grandes deste mundo, sejam eles chefes políticos ou religiosos, nem pelo burburinho das grandes cidades, mas através de um desconhecido, um pobre profeta, no silêncio do deserto. Nomeando todos os dirigentes do mundo da sua época, Lucas quer nos dizer também que o chamado do Batista se dirige a todos, e não somente aos judeus. Ali temos um aceno para a universalidade da salvação oferecido pelo Cristo da Páscoa.

E se ele vai para o deserto, é para ouvir o profeta proclamar um batismo de conversão. É preciso entrar no deserto, esse lugar de silêncio e de nudez, para tomar consciência da necessidade de se converter, tomando um caminho novo: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparem o caminho do Senhor, endireitem suas estradas” (Lc 3,4). No fundo, para que haja encontro, precisamos assumir o risco da estada e caminhar...

2. Caminhar. Após o Exílio Babilônico, o profeta Isaias convidava o povo de Deus a tomar o caminho da libertação (Is 40,3-5). Num poema escrito em torno de 539 a.C, o profeta pedia que preparassem o caminho do Senhor no deserto; ele próprio encabeçaria a procissão a Jerusalém a todos os judeus exilados a Babilônia. Na primeira leitura de hoje, o profeta Baruc releu essa passagem de Isaias, três séculos mais tarde, a fim de anunciar novamente a libertação do Povo de Deus, porque ela não se cumpriu ainda, e como o povo começa a desesperar Baruc lembra com força da promessa de libertação que tinha sido anunciada pelo profeta Isaías, três séculos antes: “Levante-se, Jerusalém, tome posição em lugar alto, olhe para o nascente e contemple os seus filhos, reunidos do nascente e do poente pela voz do Santo, que invocam alegremente a Deus” (Br 5,5).

Quando os evangelistas releem, por sua vez, essa profecia de Isaias retomada por Baruc, eles constatam também que a promessa da libertação ainda não se cumpriu, e é por isso que eles convidam todos os homens e todas as mulheres, através do profeta João Batista, a caminhar no caminho que Jesus tomará, para conduzi-los a uma libertação definitiva. Caso contrário, como a liberdade não é sempre alcançada, mesmo antes da Páscoa, São Paulo, na sua Carta aos Filipenses, da qual hoje temos um trecho, diz: “Este é o meu pedido: que o amor de vocês cresça cada vez mais em perspicácia e sensibilidade em todas as coisas. Desse modo, poderão distinguir o que é melhor, e assim chegar íntegros e inocentes ao dia de Cristo” (Fil 1,9-10).

Mas e hoje? Será que devemos continuar esperando?

3. Esperar. 2000 anos após o evento da Páscoa, nós somos sempre convidados a entrar no deserto e a caminhar, pois a nossa libertação ainda não está concluída. Não é por nada que a cada ano vivemos este tempo do Advento que nos prepara para celebrar o Natal, a festa por excelência de Cristo Ressuscitado que quer renascer ainda hoje, através de nós, a fim de nos libertar definitivamente. Não é na tristeza e no medo que nós devemos andar; o profeta Baruc nos repete hoje: “Jerusalém, tire a roupa de luto e de aflição e vista para sempre o esplendor da glória que vem de Deus” (Br 5,1). É também na alegria e na esperança que nós devemos caminhar: “porque Deus, com sua justiça e sua misericórdia, conduzirá festivamente Israel à luz da sua glória” (Br 5,9). Meu Deus! Como estamos ainda longe disso...

Contudo, como Deus precisa de nós para expressar a sua misericórdia e a sua justiça, cada vez que causamos situações de violência, de injustiças e de iniquidade na sociedade e na Igreja, todas as vezes em que despojamos as mulheres e os homens da sua dignidade e do seu direito de viver a sua diferença, e quando condenamos à exclusão aos marginais, aos pequenos e aos feridos da vida, impedimos que Deus seja Deus, nós retardamos a nossa libertação e impedimos que Cristo nasça hoje. É o que fazia que Gandhi, esse mestre da paz, falasse: “Lendo a história do mundo, me parece que o cristianismo tem ainda bastante para fazer. Com efeito, mesmo se nós cantamos: Glória a Deus no céu e paz na terra, hoje não há nem glória de Deus nem paz sob a terra. Contanto que reste fome ainda insatisfeita, e que não tenhamos erradicado a violência da nossa civilização, Cristo ainda não nasceu”.

Fonte UNISINOS
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