quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O presépio: símbolo da humanidade de Deus


No Chile, quando a árvore de Natal ainda não era conhecida, as famílias celebravam a festa ao redor de um presépio. Também eram chamados de “nascimentos”.

Alguns dos presépios de nossa história colonial e republicana vinham de Quito, onde havia artesãos especialistas em confeccionar esculturas de madeira de diversos tamanhos, tanto para um mercado de consumo local como para os fiéis de outros lugares da América do Sul. As talhas quitenhas tinham um selo particular: suas figuras mostravam um semblante ingênuo e sereno, e o famoso encarnado, que destacava a pele branca com as faces coloridas de um vermelho sutil. Este efeito se conseguia depois de esfregar bastante a bexiga de um cordeiro sobre a pintura antes aplicada. As roupas dos personagens, esculpidas também na madeira, apresentavam sempre texturas com sobredourado, ou os padrões se assomavam através dos esgrafitos. Técnicas estas que faziam das esculturas quitenhas objetos muito apreciados nos lares e conventos chilenos do século XVIII. As famílias mais pobres faziam suas próprias figurinhas com argila e madeira, ou recorriam a mestres artesãos locais de menor fama. Mas todos tinham um presépio para arrumar e onde congregar-se em época natalina.

Os presépios dentro das casas articulavam a reza das novenas, mas também as cantigas de Natal e conversas em torno deles e as oferendas que cada um queria fazer a este menino recém-nascido. Os menores entregavam seus preciosos pertences e outros adquiriam figurinhas nos postos da Alameda. Ali vendiam as “cerâmicas da freiras”, criadas pelas mãos das Clarissas, presente obrigatório para as festas natalinas. Serviam para enfeitar esta composição popular de longa data na tradição ocidental.

DA TEATRALIZAÇÃO ÀS ARTES VISUAIS
O presépio não é outra coisa que uma dramatização tridimensional do nascimento de Cristo. Suas origens —em 1223— remontam à época do santo seráfico, São Francisco de Assis, que no afã de fazer que os mistérios divinos ficassem mais perto do povo, começou a representar teatralmente o nascimento de Cristo. Neste sentido, São Francisco rompe com uma longa tradição de representação da figura triunfante e majestosa de Cristo, para propor o paradigma da humanidade de Deus encarnada num Menino. Desta nova teologia surgiriam práticas votivas inovadoras, entre as quais encontramos as representações teatrais do Natal. Em presépios de palha e acompanhados de animais e pastores, os atores representariam Jesus, José e Maria, inaugurando uma festa terna e popular para celebrar o nascimento do Filho de Deus. Paralelamente a estas representações surgiriam os cantos ao Menino Jesus, as cantigas natalinas. Originalmente, a palavra denotava uma composição poética medieval que significa canção popular (canção à maneira da vila). No final do século XV começaram a compor músicas para serem cantadas e dançadas em festas de Natal, Páscoa e Corpus Christi. Eram impressas e repartidas entre os fiéis que acompanhavam, cantando o estribilho.

Logo, esta representação passaria para as artes visuais, inaugurando uma longa tradição de um motivo tão caro à cristandade.

Efetivamente, a partir daquela época abundariam as pinturas com este motivo, assim como composições tridimensionais encenando o momento do nascimento de Cristo, com a posterior adoração dos reis magos e dos pastores. A opção de mostrar a humanidade do Menino Jesus de forma eloquente, assim como a companhia destes personagens populares, teria como conseqüência a criação e difusão de um motivo mais próximo aos fiéis, encenado como um modelo parecido ao deles. O realismo ficava consagrado como forma de culto através das artes.

RELIGIOSIDADE POPULAR
Os presépios se associam ao âmbito da religiosidade popular, na medida em que recolhem cenas costumbristas das sociedades que as criam e têm capacidade de criar vínculos emotivos com seus devotos. Existem, no entanto, vários exemplos de presépios que ocuparam recintos fastuosos e oficiais, como os realizados pelo escultor Francisco Salzillo. Este consta de 556 figuras e foi elaborado para decorar em cada Natal um dos salões do palácio de Jesualdo Riquelme y Fuentes. Famosos foram os presépios napolitanos, encarregados por nobres e personagens reais, como o que cada ano é exibido no Palácio Real de Caserta. Neste lugar, Carlos III cultivava o gosto de armar presépios que podiam ser visitados e admirados pelo povo.

Estas artes visuais se nutrem de fontes canônicas e apócrifas para articular sua narração. Em primeiro os evangelhos propriamente tais, onde São Lucas e São Mateus nos referem à cena do Natal com aqueles elementos canônicos que determinam a composição do lugar. Um segundo nível que enriquece o repertório temático e iconográfico na criação de presépios é o que surge dos evangelhos apócrifos. Estes são aqueles que, por não serem considerados de inspiração divina, não figuram dentro do cânone oficial da Igreja. No entanto, sua importância radica na enorme influência que têm na mentalidade popular e nas representações artísticas mais importantes da vida de Cristo. Em relação ao Natal, os evangelhos canônicos são muito escuetos, portanto, provêem de pouco material iconográfico. Os apócrifos, em compensação, proporcionam vários elementos porque se desenvolvem na tradição oral, pródiga em imaginação.

Neste cenário de tradições, chama a a atenção a preponderância que acusam lugares como a caverna ou a gruta onde teria nascido o Menino Jesus que teria sido iluminado por uma luz enceguecedora; as fraldas com as quais o teria coberto a Virgem Maria, os dons ofertados pelos reis Magos, assim como a presença acolhedora de um boi e um asno. Em outras narrações, os reis encontram o menino já sentado no colo de sua mãe e abrem seus cofres para ofertar presentes. No Evangelho Árabe da Infância se relata que a Virgem lhes teria dado em troca a fralda do menino.

Um terceiro nível de inspiração é o que proporciona a imaginação popular e que incorpora todo tipo de elementos da idiosincrasia local. É este nível o que permite que personagens contemporâneos entrem em cada presépio, conseguindo a verossimilitude e a proximidade do mistério. Isto explica que apareçam personagens como o padeiro, o açougueiro, a mulher que lava a roupa e o cachorro que morde o bêbado. Explica também a posterior aparição de tipos populares nacionais e inclusive de militares, convencendo o fiel de que a salvação é algo universal, possível em seu lugar e em seu tempo. A história da arte o descreve como uma manifestação cultural cheia de naturalismo, exotismo, com um especial gosto pelo efêmero. A idéia é impressionar os sentidos do espectador, conseguindo assim dar um primeiro estímulo a um aprofundamento do mistério. Da impressão pretende-se guiar para a contemplação.

O motivo do Natal e de outras cenas bíblicas derivadas deste fato fundamental não demoraria em chegar à América. A ternura e humildade simbolizadas nesse menino que nascera num presépio ou numa gruta entre animais e pastores, conseguia empatizar profundamente com uma sociedade também humilde e ansiosa de encontrar, na nova religião resultante, personagens e histórias afins com as próprias .Jesus, como menino, representava toda a humildade de uma sociedade colonial mestiça e indígena das colônias americanas.

Entre as pinturas que celebram o nascimento de Jesus há várias adorações de estilo cuzquenho que povoaram os conventos do Chile colonial e republicano. Nelas vemos muitas vezes pastores e anjos que levam frutas para oferecer ao menino recém- nascido. Embora a exegese bíblica diga que o cesto com frutas representa as Escrituras e sua doçura é o alimento da alma, nestes casos funciona mais como oferenda à divindade. É a possibilidade de convivência entre as duas esferas, a humana e a divina. O homem entrega a seu Deus o melhor de sua terra e Ele lhe devolve com dons variados. A possibilidade desta prática se baseia no mistério da Encarnação, no qual Deus se fez homem e como tal tem necessidades físicas, entre elas, o alimento.

Esta forma de constituir significado é análoga à realizada por freiras de convento em suas celas com seus próprios fanais votivos. Referimo-nos àquelas cápsulas ovaladas de vidro que abrigam o Menino Jesus rodeado de pequenas figurnhas. Oferecem ao menino, entre outras coisas, miniaturas de artesanato representando flores e frutas. Também povoam os fanais artesanatos de crin, cestos e miniaturas da cerâmica de Quinchamali. Em sua miniaturização contêm todo o significado da natureza, mas são mostras de humildade diante da grandeza da divindade. Como as frutas dos cestos das pinturas, não são outra coisa que símbolos de virtudes espirituais. Parecidas, também, com todas aquelas figurinhas de terracota ou de madeira que conformam os presépios. Nestes abundam os personagens populares exercendo seus trabalhos cotidianos e levando alimentos para oferecer ao recém-nascido. Da literatura religiosa decimonônica, vemos também um discurso narrativo que acompanha esta devoção especial ao Menino Jesus em seu nascimento. Nas novenas se rezam jaculatórias com referentes ao mundo cotidiano de um menino e estes estão aí para simbolizar presentes espirituais. Dão um berço ao menino para que tenha mais conforto, através da virtude da humildade; ou cobrem-no com um cobertor branco suave através da generosidade. Vestem-no com um xale branco mediante a virtude da paciência. Assim, conforma-se um espaço simbólico coerente entre reza, prática espiritual e oferenda material à imagem do Menino Jesus. O mundo sensível é o que proporciona insumos e referentes para poder entrar naquele mundo transcendental. Através da oferenda se estabelece o vínculo entre estas duas esferas.

Alheias a nossas raízes são, em compensação, as histórias que relatam a aparição da árvore de Natal. Dizem que foi no século XVI, depois do triunfo do protestantismo luterano, quando na Alemanha e na Suécia começou a mudar o presépio por uma árvore de uma forma simbólica. Para justificar esta mudança é que criaram algumas lendas. Mas essas são outras histórias.

- Olaya Sanfuentes
Fonte: Mirada Global. Reproduzido via Amai-vos.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...