Foto: Pep Ventosa
Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, e o cardeal emérito de Milão, Carlo Maria Martini, refletem sobre os pontos que unem fé e existência terrena. Dois pontos de vista que partem de premissas diferentes buscam na justiça, na caridade e no perdão uma perspectiva comum.
A reportagem é do jornal La Repubblica, 24-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.
No fundo de um longo corredor, uma porta de vidro se abre para uma pequena sala onde escorre o tempo de Carlo Maria Martini, ex-arcebispo de Milão, biblista, pastor de almas e de consciências, cardeal da Santa Igreja Romana. Ele se senta em uma cadeira ao lado de uma janela da qual se veem um pedaço de céu e um cipreste.
Ao seu lado, está o seu assistente, Pe. Damiano, que é quase a sua sombra, o ajuda a se mover, administra-lhe os medicamentos nos horários estabelecidos, o acompanha nos seus deslocamentos quase raros. Não é frequente que um jesuíta se torne cardeal e é ainda menos frequente que tenha estado à frente da diocese mais importante da Europa, mas Martini é uma exceção por muitas coisas e também pela sua carreira eclesiástica.
Eu vi os jesuítas muito de perto em uma fase particular da minha vida: eu tinha 20 anos, era 1944, Roma estava ocupada pelos nazistas. Os jovens recrutas e os judeus eram procurados pelas SS, a polícia militar do Reich, e eu encontrei refúgio junto a uma centena de outros jovens na Casa del Sacro Cuore, onde os jesuítas promoviam os chamados "exercícios espirituais". Duravam no máximo uma semana, mas, no nosso caso, duraram mais de um mês. A casa era um território extra, com bandeira do Vaticano na janela e guardas paladinos no portão.
Como os jesuítas não dizem mentiras, como nos disse o padre reitor, tivemos que fazer os exercícios espirituais de verdade, embora entre nós houvesse muitos judeus e alguns não crentes.
Para mim, foi uma experiência valiosa, até porque o reitor era o padre Lombardi, um sacerdote de notável personalidade e de grande fineza intelectual, ao qual, mais tarde, foi dado o apelido de "microfone de Deus" por causa de suas atividades que, na bem da verdade, eram mais políticas do que pastorais.
Os jesuítas que eu conheci naquela ocasião, que guiavam as "meditações" e celebravam a missa e outras funções religiosas que pontilhavam os nossos dias, eu observei com muita atenção. O reitor, quando nos despedimos, me propôs até que eu me inscrevesse na Universidade Gregoriana, tínhamos entrado em confidências e também em polêmicas durante uma série de debates sobre Santo Agostinho e sobre São Tomás.
Lembro esses episódios pessoais para dizer que os jesuítas que eu conheci naquela época não se assemelhavam em nada a Carlo Maria Martini. Eram muito acolhedores e amigáveis, mas também muito arcaicos no seu modo de considerar a religião. Martini, ao contrário, está totalmente envolvido na modernidade do pensamento.
Quanto à intensidade da fé, não cabe a mim medi-la. Digo apenas que a fé de Martini nos faz pensar, porque emerge do seu profundo. Aquela que se respirava no Sacro Cuore, ao contrário, tinha um cheiro de sacristia bastante desagradável para quem, como eu, não tem a fé e nem sente a necessidade de buscá-la.
Pergunto-lhes, então, qual é a razão pela qual eu visite Martini frequentemente e ele aceite de bom grado essas visitas. A minha resposta é que estamos no mesmo comprimento de onda, nos sentimos em sintonia um com o outro, e o motivo provavelmente é este: nós dois nos fazemos as mesmas perguntas: quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Essas perguntas parecem ter se tornado um lugar comum, talvez o sejam, mas continuam constituindo a base de toda filosofia e de todo conhecimento. As nossas respostas muitas vezes diferem, mas às vezes coincidem e, quando isso acontece, para mim é uma festa, e espero que para ele também.
O nosso encontro de hoje é o quarto que eu tive com ele. É o dia 6 de novembro, chove lá fora, estamos na casa de repouso da Companhia de Jesus em Gallarate, em um prédio que foi doado à Companhia há cerca de 50 anos pela família Bassetti. Os encontros anteriores ocorreram em 2009 e em 2010, mas o primeiro foi um debate que ocorreu em Roma no fim dos anos 1980 no Palácio da Chancelaria, organizado pelo Pe. Vincenzo Paglia, da comunidade de Santo Egídio.
O cardeal está com Parkinson, está muito lúcido, mas caminha com dificuldade. Há algum tempo, o mal lhe enfraqueceu muito a voz, que se tornou quase um sussurro, mas o Pe. Damiano aprendeu a ler do movimento dos seus lábios as palavras sem voz e as traduz para torná-las compreensíveis.
A nossa conversa aqui transcrita foi revisto pelo cardeal: as dificuldades da comunicação tornavam necessário o seu imprimatur.
Eis a entrevista.
Eugenio Scalfari – Gostaria de começar o nosso diálogo por um nome e pela pessoa que o portava: Jesus. Para mim, essa pessoa é um homem nascido em Belém, onde seus pais, José e Maria, que viviam em Nazaré, se encontravam ocasionalmente no dia e na noite do parto. Para o senhor, eminência, esse menino é o filho de Deus. Parece que a diferença entre nós, sobre esse ponto, portanto, é insuperável. Mas é precisamente esse nome que nos une. O senhor o chama de Jesus Cristo, eu o chamo de Jesus de Nazaré. Para o senhor, é Deus que se encarnou no Filho, para mim é um homem que se acredita ser o Filho, e nessa convicção ele viveu os últimos três anos da sua vida, os anos de pregação e depois da "paixão" e do sacrifício. Mas a pregação é justamente aquela parte da sua vida que nos une. Eu pensei muito no encontro de duas pessoas já avançadas em anos que vêm de educações, culturas e trajetos de vida tão diferentes que estão ansiosos por se conhecer cada vez mais e cada vez melhor. Tudo isso tem um sentido? Às vezes, penso que o senhor espera me converter, me fazer encontrar a fé. Isto recairia nas suas tarefas de pai de almas. É a isso que o senhor se propõe?
Carlo Maria Martini – Não, não penso em lhe converter, embora não possamos excluir, nem eu, nem você, que, em um certo ponto da sua vida, a luz da fé possa lhe iluminar. Mas essa é uma eventualidade que se refere apenas a você. Você busca o sentido da vida. Eu também o busco. A fé me dá esse sentido, mas não elimina a dúvida. A dúvida muitas vezes atormenta a minha fé. É um dom, a fé, mas também é uma conquista que pode se perder a cada dia, e a cada dia pode ser reconquistada. A dúvida faz parte de nossa condição humana. Seríamos anjos e não homens se tivéssemos afugentado a dúvida para sempre. Aqueles que não se põem à prova com esse tormento têm uma fé pouco intensa, muitas vezes a deixam de lado e não vivem a sua essência. A fé intensa não deixa esse espaço cinza e vazio. A fé intensa é uma paixão, é alegria, é amor pelos outros e também por si mesmo, pela sua própria individualidade ao serviço do Senhor. O Evangelho diz: ama o teu próximo como amas a ti mesmo. Não há nessa mensagem a negação do amor também por si mesmo. O amor – se é verdadeira paixão – atua em todas as direções, é transversal, é ao mesmo tempo vertical para Deus e horizontal para os outros. O amor pelos outros já contém o amor por Deus. Você ama os outros?
Eugenio Scalfari – Nem sempre, não totalmente. Eu estaria mentindo se dissesse que amo os outros com paixão assim como eu amo pessoas próximas de mim, e eu estaria mentindo se dissesse que o ódio é um sentimento desconhecido para mim. Detesto a injustiça e odeio os injustos. Tolero os diferentes de mim e, em alguns casos, os amo, pensando que a sua diversidade é uma riqueza. Mas os injustos, não.
Carlo Maria Martini – Talvez você se lembrará que, sobre o tema da injustiça, discutimos muito no nosso encontro anterior.
Eugenio Scalfari – Lembro muito bem. Eu lhe perguntei quais eram os pecados mais graves, e o senhor me respondeu que os preceitos da Igreja enumeram uma série de pecados numerosa. Na realidade – você me disse e eu transcrevi fielmente no artigo que eu fiz depois daquele nosso encontro –, o verdadeiro pecado do mundo é a injustiça, do qual os outros derivam.
Carlo Maria Martini – Sim, o senhor se lembra muito bem, eu disse assim. Mas talvez não aprofundamos o suficiente o que eu entendia pela palavra injustiça.
Eugenio Scalfari – Pode explicar agora.
Carlo Maria Martini – Pois bem, a injustiça é a falta de amor, a falta de perdão, a falta de caridade e o sentimento de vingança.
Eugenio Scalfari – O senhor também me disse que o sacramento da confissão e da penitência, fundamental para os cristãos, não é mais vivido e praticado como deveria ser.
Carlo Maria Martini – A penitência não é recitar dez "pai-nossos", mas sim descobrir a beleza da caridade e colocá-la em prática.
Eugenio Scalfari – Isso me lembra o arrependimento do Inominado de Manzoni em Os noivos...
Carlo Maria Martini – A luta contra o egoísmo é muito longa.
Eugenio Scalfari – Deduzo que o Criador criou um mundo injusto.
Carlo Maria Martini – O Criador deu aos seres humanos a liberdade. Ela pode gerar a solidariedade para com os outros, mas também o egoísmo, a opressão, o amor pelo poder. Eu li o seu último livro, você fala dessas coisas.
Eugenio Scalfari – Sim, eu também penso que o instinto de amor permeia a vida das pessoas, mas têm dimensões e direções diferentes. O senhor chama isso de amor, eu chamo de eros, o senhor chama o bem de caridade, e eu o chamo de sobrevivência da espécie, isto é, humanismo. Parece-me que, com palavras diferentes, dizemos a mesma coisa. Jesus, pelo que eu entendo, tentou o milagre de anular o amor por si mesmo, mas esse milagre não teve êxito.
Carlo Maria Martini – Jesus não tentou anular o amor por si mesmo, ao contrário, colocou-o como medida para o amor pelos outros.
Eugenio Scalfari – Eu penso que a vida começou a partir de um ser monocelular e depois seguiu em frente vertiginosamente segundo a evolução natural. Nós temos uma mente reflexiva que nos permite pensar a nós mesmos e ver as nossas ações, mas na economia do Universo somos um pequeno evento: assim nasceu o mundo e todos nós, e assim desaparecerá. Nesse ponto, nenhuma outra espécie será capaz de pensar Deus, e Deus morrerá se nenhum ser vivo for capaz de pensá-lo. Nós não somos uma regra, nós somos um acaso, uma espécie criada pela natureza, como eu acredito, ou por um deus transcendente, como o senhor crê. Spinoza diz: Deus sive Natura, ou Natura sive Deus. O senhor sabe que essa concepção da divindade, tão intensa como a do senhor, desemboca na imanência? Uma centelha de Divindade está, portanto, em todas as criaturas vivas e é justamente a vida.
Carlo Maria Martini – Você me perguntou no nosso encontro anterior o que eu pensava da afirmação do teólogo Hans Küng que defende a fé na vida como a condição preliminar e necessária para se chegar à fé em Deus. Lembra-se?
Eugenio Scalfari – Sim, lembro também que o senhor estava de acordo com essa afirmação.
Carlo Maria Martini – É verdade, e vê-se isso observando um bebê recém-nascido, que se confia totalmente nas mãos dos pais. Você também veio aqui na confiança que não encontraria ninguém com um fuzil apontado contra você. Essa é uma forma primária de fé.
Eugenio Scalfari – Claro. O senhor disse, em um escrito seu, que é um erro afirmar que Deus é católico.
Carlo Maria Martini – Sim, eu disse isso. Deus é o Pai de todos os povos, portanto, dar-lhe o adjetivo de católico é limitante.
Eugenio Scalfari – O senhor terá que admitir, no entanto, que o monoteísmo cristão é muito diferente do judaico e também do Islã. Nessas religiões, a Trindade seria considerada heresia inconciliável com o Deus único. Nessas religiões, o Deus único é inominável e não representável. Para os cristãos, ao contrário, ele tem o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e foi pintado e esculpido ao longo de milênios. A história da arte ocidental é em grande parte a história de Deus, do Filho, da mãe do Filho, dos Santos. Pode-se dizer que o cristianismo é uma religião monoteísta? Ou historicamente é uma religião helenista?
Carlo Maria Martini – A Trindade é Deus-comunhão. O Filho é a Pessoa com quem o Pai se manifesta aos homens. Talvez o modelo "ontológico" com o qual se pensou a Trindade até hoje deveria dar lugar ao modelo "relacional" que ajudaria mais até o diálogo horizontal. Quanto ao Santos, não são só intermediários entre nós e Deus, mas também testemunhas do bem, e talvez a Igreja canonizou muitos deles.
Eugenio Scalfari – Portanto, quando a nossa espécie desaparecer, e quando o juízo universal ocorrer, o Filho não terá mais razão de ser, nem o Espírito Santo.
Carlo Maria Martini – Não exatamente, o Filho será a bem-aventurança das almas que viverão na luz.
Eugenio Scalfari – Sem memória do eu terrestre que abandonaram?
Carlo Maria Martini – Nós, homens, não somos capazes de saber essas coisas, de conhecer o além. Mas sabemos que Paulo diz que a Caridade jamais terá fim. Portanto, supomos que reconheceremos o que vivemos no amor.
Eugenio Scalfari – Deus é o pai de todos os povos, mas a Igreja também fez do Deus católico uma bandeira de identidade, de guerra e de massacres.
Carlo Maria Martini – Quando fez isso, estava equivocada. A Igreja, assim como todas as instituições terrenas, contém o bem e o mal, mas é depositária de uma fé e de uma caridade muito grandes. Até Pedro renegou.
Eugenio Scalfari – Talvez seja muita instituição.
Carlo Maria Martini – Talvez seja muita instituição.
Eugenio Scalfari – Talvez seja muita dogmática.
Carlo Maria Martini – Eu diria de outra forma: o aspecto colegial da Igreja foi muito negligenciado. A meu ver, esse ponto deveria ser profundamente revisto.
* * *
A conversa já dura mais de uma hora. Eu olho para o Pe. Damiano de modo interrogativo, e ele diz que sim com a cabeça. Digo ao cardeal que chegou a hora de me despedir. "Mas eu lhe faço uma última pergunta: o que o senhor pensa dos fatos políticos italiano destes últimos meses? A Igreja, depois de um silêncio muito longo, misturado com alianças altamente questionáveis, finalmente pediu, com o cardeal Bagnasco, que fosse limpada a lama que manchou a ética pública. O senhor concorda com essa posição?".
Carlo Maria Martini – Eu concordo. Na Itália, existe uma catolicidade informada e consciente, e há anticorpos preciosos que, no fim, se manifestarão, contribuindo para recuperar o bem também na esfera onde se administra o poder.
Eu me levanto. Ele também se levanta, ajudado pelo Pe. Damiano. Nos abraçamos. Ele murmura algo, e o Pe. Damiano traduz: "Ele disse que reza frequentemente pelo senhor". Dirigindo-me a ele, lhe digo: "Eu penso frequentemente no senhor. É o meu modo de rezar".
Ele se aproxima do meu ouvido e, com um fio de voz, diz: "Rezo por você e também penso em você frequentemente", ele sorri e aperta a minha mão. Talvez ele quisesse dizer que pensar no outro é mais do que rezar. Pelo menos eu entendi assim. Tweet
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