Atualização em 9-12-13: você já leu a carta de alguns grupos católicos LGBT brasileiros para os bispos? O texto, com o link para a petição (pra quem quiser assinar e apoiar), está aqui. :-)
Projetada com a intenção de filtro para bispos e para paróquias, a sondagem promovida por Francisco tornou-se, assim, patrimônio de todos, “regulares” e especialmente “irregulares”, a começar pelos interessados diretos, ou seja, os casais protagonistas das novas realidades, ou “Rerum Novarum”, com alusão à mais famosa das encíclicas, a respeito da qual as palavras do documento apresentado mostra uma afinidade sugestiva.
“Delineiam-se hoje problemáticas inéditas até a alguns anos”, começa o texto que introduz o questionário, “a propagação dos casais de fato, que não procuram o matrimônio, e, às vezes, não excluem a ideia da união entre pessoas do mesmo sexo, a quem, não raro, é consentida a adoção de filhos”.
"Nós não podemos mais fazer o papel de avestruz”, sintetizou com cuidado explícitou o bispo Bruno Forte, teólogo progressista de renome mundial, que Francisco tirou de sua década de exílio na província como arcebispo de Chieti e nomeado Secretário Especial da Assembleia Extraordinária, programada para 5 a 19 de outubro de 2014, sobre “Desafios Pastorais da Família”, reunindo, em Roma, os presidentes de todas as conferências episcopais.
O seu convite para não enterrar a cabeça na areia e para não virar o olhar encontra nítido eco no preâmbulo: “Se, por exemplo, pensa-se no simples fato de que, no atual contexto, muitas crianças e jovens, nascidos de matrimônios irregulares, possam não ver jamais os seus genitores aproximarem-se dos sacramentos, compreende-se o quanto urgente são os desafios para a evangelização na situação atual, no entanto, espalhou-se para todas as partes da aldeia global”.
É o próprio Papa que presidirá as reuniões preparatórias de 7 e 8 de outubro, contribuindo com a individuação e redação das perguntas, incluindo a mais espinhosa: “No caso das uniões de pessoas do mesmo sexo, como comportar-se pastoralmente em vista da transmissão da fé?”.
Bergoglio não inovou somente o método, mas a estrutura do Sínodo, que, até agora, contradizendo a própria etimologia e natureza, parecia estático, não dinâmico, condescendente a priori, e independência plebiscitária contra os Pontífices.
Ao contrário, para a sua Igreja, Francisco tem em mente um “sistema bicameral” verdadeiro que se distinga pela vivacidade do debate e pela capacidade de mobilização.
Os jornalistas tiveram a prova na conferência de imprensa do bispo Lorenzo Baldisseri, toscano de Garfagnana e embaixador versátil, habituado aos países continentes do Brasil à Índia, hoje secretário da assembleia sinodal ou, se quisermos, em analogia com a linguagem parlamentar, porta-voz da “câmara baixa”, por definição, a mais próxima das pessoas.
De resto, Bergoglio não tinha deixado dúvidas acerca de seu entendimento na entrevista de setembro para a Civiltà Cattolica: “Os consistórios, os sínodos são lugares importantes para tornar a consulta verdadeira e ativa. Necessita, no entanto, torná-los menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não formais”.
Provando que está falando sério sobre a experiência de partida, o Papa que, na juventude diplomou-se em química, escolheu o reagente mais explosivo – a moral familiar –, e a fórmula mais arriscada – um questionário de trinta e oito perguntas sobre os problemas em aberto e temas que queimam, suscetíveis de provocar uma reação em cadeia com consequências imprevistas: “Pode acontecer o que pode acontecer a todos aqueles que saem de casa e vão às ruas: um incidente”, tinha dito há seis meses durante a vigília de Pentecostes. “Mas eu lhes digo: prefiro mil vezes uma Igreja machucada, por causa de um acidente a uma Igreja doente porque fechada em si mesma!”.
Se Bergoglio dispõe do diploma em Química, Baldisseri possui um de piano: papa Ratzinger executava Mozart, Baldisseri, ao contrário, o genial compositor carioca Villa-Lobos, que inseriu no classicismo europeu os ritmos populares da América do Sul.
Para ler atentamente a partitura e escutar o papel de relator geral, bem como o primeiro tenor do Sínodo, o arcebispo de Budapeste, Peter Erdö, adverte que, de fato, a configuração que permanece por enquanto é a tradicional, mas mudou a interpretação, menos rigorosa e mais generosa, empreendedora e com traços aparentemente inacabados, com acentos suspensos e liberdade de expressão, e claramente estendeu firmemente a mão para conquistar um público diferente e mais amplo.
O documento confirma a mensagem das Sagradas Escrituras e o magistério do Concílio sobre os valores da família e sobre a lei natural, reiterando-o com as palavras do catecismo: “A aliança matrimonial, mediante a qual um homem e uma mulher constituem entre si uma comunhão íntima de vida e de amor foi fundada e dotada de suas próprias leis pelo Criador”.
Ao mesmo tempo, no entanto, perguntou desde a primeira indagação do questionário, se e até que ponto esse ensinamento é “conhecido e integralmente aceito” pelos fiéis: “O conceito de lei natural na relação da união entre homem e mulher é comumente aceito enquanto tal por parte dos batizados em geral?”.
Como na tradição dos verdadeiros parlamentos, a “câmara” reunir-se-á em duas sessões, com uma distância de um ano entre elas: uma assembleia extraordinária em outubro de 2014, para obter respostas e testemunhos, definindo o “status quaestionis” e medindo a extensão dos “desafios” que afetam e ameaçam perturbar a pastoral da família. Uma outra assembleia, ordinária, ocorrerá no outono de 2015, para assimilar os novos conceitos e desenvolver uma sensibilidade coletiva, ao longo de um caminho que envolve um bilhão de católicos, e desenvolve-se sob os olhos do mundo, confiando em Deus e confiando no instinto das pessoas.
“Os bispos, particularmente, devem ser homens capazes não somente de acompanhar com paciência o seu povo, de modo que nenhum fique para trás, mas também acompanhar o rebanho que tem um instinto para encontrar novos caminhos”, explicou Francisco no colóquio com Padre Spadaro.
Na ânsia de reformar o executivo com a incorporação dos ministérios, em que o concílio “constituinte” dos oito cardeais está trabalhando, Bergoglio transmitiu, portanto, um choque de adrenalina nas duas assembleias “legislativas”: a câmera alta dos cardeais e a baixa do Sínodo dos Bispos.
No papel, tratam-se dos órgãos consultivos, que não legislam, visto que o Pontífice Romano é ainda um monarca absoluto, mesmo na era de Francisco: ambos, porém, tornam-se legais, se o soberano reinante ratifica suas deliberações, no sentido de um exercício colegial do ministério de Pedro, que, sem afetar a constituição formal da Igreja, inova-a, todavia, a material.
A câmara alta de imediato virá reequilibrada geograficamente, já no consistório de fevereiro, redimensionando o componente italiano e europeu, para dar espaço aos países excluídos do último conclave. Mas, mais tarde, poderia ser modificada geneticamente, com o ingresso de uma mulher cardeal ou, pelo menos, uma reavaliação e reorganização do colégio que elege o Papa, integrando a linhagem divina dos purpurados com os representantes laicos do povo de Deus.
Há dois domingos, enquanto caía o pano na festa das famílias, a última quermesse no tema do Ano da fé, escrevemos que, no Vaticano, tinha aparecido o sinal “trabalho em curso”.
Francisco de manhã, nos seus discursos tinha voado alto, como os balões que alçam no céu de São Pedro, metáfora colorida de uma realidade mais variada, e “irregular”, dos preceitos que a retratam em preto e branco.
Um dia depois, no entanto, com os dias que se encurtavam, voltou celeremente ao hospital de campanha e aos corredores de emergência, que conduzem o caminho do Sínodo em direção à zona de sombra, em que a tarefa da Igreja e de seu questionário, em primeiro lugar, não é a clareza da doutrina, mas sentir a carícia divina sobre as feridas da vida: “Os ministros do Evangelho devem ser pessoas capazes de reaquecer o coração das pessoas, de caminhar no meio da noite com elas, de saber dialogar, e também de descer na noite delas, na sua escuridão sem perder-se”. Tweet
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