Grafite: Bansky
Uma noite, ao tentar fugir da polícia, um jovem de 19 anos perdeu o controle de um Cadillac roubado, bateu contra um ponto de ônibus e matou quatro pessoas. Foi preso e condenado por quase-delito de homicídio e outros delitos, tendo sido condenado a 47 anos de presídio. Este incidente não foi a única tragédia que presenciara em sua relativamente curta existência. Abandonado por seu pai e criado por uma mãe alcoólica, o jovem nunca teve infância. Durante a adolescência, seus amigos usavam e traficavam drogas em carros roubados. Agora, aos 30 anos, sairá finalmente da prisão. Embora seja tarde demais para consertar o dano causado por seus atos, o tipo de pessoa que será quando estiver novamente nas ruas de Wisconsin ainda é uma pergunta sem resolver.
Atualmente há 2,3 milhões de homens e mulheres nas prisões americanas, a proporção de encarceramento mais alta do mundo. Três de cada 100 adultos americanos estão em liberdade condicional, em prisão ou em liberdade sob palavra. Segundo o Ministério da Justiça dos EUA, a cada ano quase 650.000 pessoas saem das prisões estatais ou federais, e muitas mais dos cárceres locais. A reinserção com freqüência falha; a metade dos presos em cárceres estatais voltarão à prisão dentro dos três anos seguintes a sua libertação.
Os cidadãos querem que os culpados de crimes graves sejam castigados para manter o estado de direito, como método de dissuasão para cometer mais delitos e para assegurar-se de que os criminosos “paguem sua dívida com a sociedade”. Estigmatizar a criminosos e exigir condenações mais severas rende bons dividendos eleitorais. Mas, como as taxas de reincidência demonstram, as políticas resultantes não propiciam a reabilitação.
Há uma afirmação fundamental do cristianismo, é que Deus ama todos os seres humanos. A forte defesa que o cristianismo faz da pessoa, fundamentado na crença de que todo ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, abrange homens e mulheres em nossos cárceres da mesma maneira que aqueles que estão por nascer e os idosos. Isso nós encontramos nas Escrituras, onde visitar os que estão na prisão é uma das demonstrações físicas de compaixão e caridade que se equiparam com o amor a Cristo. Um dos últimos atos de Jesus, antes de sua morte no Calvário, foi a de estender sua misericórdia ao criminoso arrependido (e a seus próprios verdugos impenitentes). A mensagem de Cristo se expressa poderosamente em suas próprias palavras: ”Os sãos não necessitam de médico, mas sim os que estão doentes; eu não vim chamar os justos, mas sim os pecadores” (Mc 2,17).
Privar de liberdade às vezes é necessário para proteger a sociedade dos criminosos perigosos. Mas tornar um infrator responsável não é o mesmo que defini-lo pelo pior que tiver feito. Da mesma maneira, a privação de liberdade não precisa equiparar-se com o desterro moral entre os homens. Recordar a dignidade humana básica do infrator pode reforçar as esperanças de reabilitação. Isto muda o foco desde a condenação para a conversão, brindando a possibilidade de reconciliação na comunidade de vítimas e condenados.
Um tipo diferente de justiça
Uma iniciativa da qual participei pode servir de exemplo já que envolve homens e mulheres em todo o país que trabalharam a favor da justiça restaurativa.
Janine Geske, anteriormente juíza da Suprema Corte de Justiça de Wisconsin, é diretora de Restorative Justice Initiative da Escola de Direito de Marquette University. Parte de seu trabalho consiste em estabelecer oficinas de justiça restaurativa em prisões de máxima segurança duas vezes por ano. Ao ter realizado investigação sobre a justiça restaurativa e ter trabalhado como voluntário no sistema carcerário de Massachusetts, fui convidado a participar numa destas oficinas de três dias em Green Bay Correctional Institution, em abril passado.
O processo da juíza Geske está centrado na reflexão circular, uma adaptação de uma prática dos nativos americanos que procura provocar uma compreensão transformadora, através da conversa entre os participantes, conversa honrada e livre de julgamentos. Nesta oficina participaram 25 presos, várias mulheres cujas vidas mudaram irrevogavelmente por causa de um crime e de alguns estudantes de direito de Marquette.
No primeiro dia, os líderes da oficina definiram e explicaram o conceito de justiça restaurativa; depois grupos menores discutiram a onda de efeitos daninhos que um ato criminoso provoca. O foco não estava só nas conseqüências negativas de nossos atos, mas também na responsabilidade que nos cabe por eles. Os participantes ouviram três vítimas: uma mãe cujo filho foi morto por um motorista que manejava ébrio; a viúva de um oficial da polícia assassinado em ato de serviço, e uma esposa e mãe que foi raptada e violada a ponta de navalha. Estas participantes preferiram chamar-se vítimas sobreviventes, para deixar estabelecido que não se limitaram ao papel passivo de serem ‘só’ vítimas. Através de seus relatos estas mulheres expressaram algo do dano que elas e seus seres queridos tinham sofrido na mão de outros. Enquanto os presos escutavam completamente concentrados, alguns se emocionaram até as lágrimas, horrorizados com o que estavam escutando. Suas emoções variavam da fúria contra os culpados até a culpa e profundo arrependimento pelos efeitos que seus próprios crimes tiveram sobre pessoas inocentes.
O dia final abriu com uma mesa redonda de discussão sobre as revelações que os reclusos ouviram no dia anterior. As revelações foram depois expressas através da arte, da música e da narração. Os participantes fizeram representações em grupos, com retratos imaginativos (às vezes humorísticos) de como indivíduos encerrados em modelos de conduta destrutiva podem contribuir com formas de vida mais construtiva. Apesar de os reclusos terem lutado com a culpa e o perdão, expressaram esperança futura e fizeram compromissos práticos tendo em vista mudanças comportamentais. Inclusive aqueles que não tinham esperança de sair “sob palavra” estiveram de acordo em fazer mudanças positivas em sua relação com os outros presos, pessoal administrativo e suas famílias, e da maneira como viam a si mesmos.
Após as oficinas
As oficinas de justiça restaurativa podem conseguir várias coisas. Primeiro, são atividades importantes para as vítimas sobrevivientes. Falar para a uma sala cheia de perpetradores com frequência abre as avenidas da cura, tanto para eles como para os reclusos presentes. As três oradoras na oficina de Green Bay disseram que é vivificante não estar reduzidas ao silêncio ou se retorcer em seu sofrimento e ressentimento. A cura funciona em ambos sentidos: “quero que saibam que há pessoas lá fora, na comunidade, que se preocupam por vocês” —disse uma oradora aos reclusos—. Sua maneira respeitosa, por outro lado, foi importante para as vítimas sobreviventes, que manifestaram esperança de que os presos pudessem ver o profundo efeito de seus crimes e portanto que fosse menos provável que os repetissem a futuro. “Se o que eu falo impede que no futuro uma pessoa se transforme na vítima de um crime violento, meu esforço terá valido a pena”, disse uma das vítimas sobreviventes.
Em segundo lugar, para a maioria dos detentos este oficina foi a primeira que escutaram sobre a atual cifra de crimes de boca de uma vítima real falando em primeira pessoa. Pedir aos delinquentes, homens defendendo-se de qualquer demonstração de vulnerabilidade ou falta de confiança em si mesmos, que refletissem sobre seus atos e que compartilhassem seus pensamentos com os demais também produziu uma mudança significativa. Para eles, a parte mais difícil foi prestar atenção nos relatos sobre o sofrimento dos inocentes.
Dado que o processo da justiça criminosa se enfoca muito especialmente no crime como a violação da lei, é fácil que se perca perspectiva da vítima. A natureza contenciosa do processo legal também diminui as probabilidades de que os delinquentes percebam o que suas vítimas tiveram que suportar e o que deverão continuar sofrendo. Inclusive quando as vítimas falam numa vista de sentença, seu depoimento com frequência é usado para justificar o castigo ao delinquente, não para reparar o dano causado à vítima.
Em contraste, os depoimentos das vítimas sobrevivientes ajudam os detentos a verem os efeitos em cascata que têm seus atos. No decorrer da oficina, muitos delinquentes admitiram que nunca tinham considerado seriamente os impactos humanos de seus crimes. Isto pode parecer esquisito, mas devemos perguntar-nos com que frequência a maioria de nós sabe (ou quer saber) sobre o impacto negativo de nossos erros? O mesmo é certo para aqueles que são condenados por roubo à mão armada, violação ou homicídio.
Terceiro; a oficina ofereceu um fórum para que os presos pudessem falar de suas próprias origens problemáticas. A dor das vítimas dos crimes trouxe de volta suas próprias dores: um jovem adolescente severamente golpeado por membros de uma liga que controlava seu bairro; um menino de 5 anos que via como sua mãe era agredida e estuprada; um homem que aos 9 anos de idade foi estuprado com a ponta de navalha por seu professor favorito e depois ameaçado de morte para que guardasse silêncio; um menino de 13 anos cuja irmã se prostituiu para poder pagar o craque que consumia, morrendo assassinada na rua.
É inegável que os que causam dano a outros com freqüência eles próprios também foram punidos. Isto provocou compaixão tanto nos presos como também nas vítimas sobreviventes. No entanto, nem um dos dos detentos invocou traumas da infância para exonerar-se ou para mitigar sua responsabilidade. O relato destas histórias também não se transformou numa ocasião para comparar sofrimentos; foi mais uma libertação catártica de energia emocional provocada por presos internalizando-se, ainda que brevemente, no sofrimento do outro. O compartilhar mudou a maneira como estes ofensores viram a si mesmos e os demais. “Você me permitiu enfrentar meus demônios”, disse um dos presos a uma vítima. “Agradeço-lhe por ter-me devolvido minha humanidade”, disse outro. O depoimento dos sobreviventes liberaram os homens para que pudessem reconhecer suas próprias ondas de frustração e repugnância, seu agastamento e ira, sua culpa e vergonha. A compaixão que sentiram pelas vítimas sobreviventes e por seus companheiros, além da pena para uma nova determinação e responsabilidade.
Para mim, o comentário que definiu a oficina foi feito no último dia: “o que aprendi nesta semana” disse um deles, “é que estamos todos quebrantados, mas não estamos sozinhos”. Este homem, aos trinta e poucos anos, está enrolado numa cultura carcerária que vê a vulnerabilidade como uma debilidade e um convite aos problemas. Entretanto, ele percebe que foi debilitado por sua educação e por suas próprias más decisões, não precisando fazer crer que é diferente. Percebeu que o fato de se encontrar debilitado é condição humana comum. Suas palavras expressaram o que muitos tinham descoberto: um novo sentido de solidariedade entre aqueles marcados pela vida e uma nova capacidade de amizade para com os demais.
A dimensão da redenção
A oficina da justiça reparadora não foi uma atividade religiosa em si. Porém, muitos dos detentos expressaram sua fé em Deus e o desejo de viver corretamente. Longe de procurar um “perdão barato”, confessaram que merecem estar encarcerados, e uns poucos inclusive declararam que “não merecem ser perdoados”. Além disso, outros expressaram a esperança que algum dia sejam considerados pelo divino médico que veio curar os doentes, não os sãos. Nas palavras de um detento: “Quando não nos resta nada mais, Deus está fazendo alguma coisa”.
A oficina ajudou os presos a reconhecer que estão quebrantados para poder começar a viver vidas regidas pelo amor, em vez do medo e da vergonha. Nas palavras de Jean Vanier e Stanley Hauerwas em Living Gently in a Violent Word, “não podemos estabelecer uma relação com pessoas que estão fraturadas a não ser que de alguma maneira nós nos encarreguemos de nossas próprias transgressões”. Ao enfrentar suas trnasgressões, os reclusos entram em contato com seu desejo de cura, não só para suas vítimas, mas também para si mesmos.
A crença cristã sustenta que inclusive os erros do passado não podem ser refugos ou esquecidos, podem ser redimidos. Tal redenção, se for verdadeira, tem que começar aqui e agora, num contexto de comunidade. Tal como observou Thomas Merton, O.C.S.O., “Nenhum homem vai sozinho para o céu”. Reconhecer que “estamos todos fraturados, mas não estamos sozinhos” está a tom com a Eucaristia na qual se parte Cristo e é repartido num grande ato de redenção. Esta verdade se aplica não só aos reclusos dos cárceres de alta segurança, mas a cada um de nós: quebrantados e pecadores, no entanto, amados e chamados por Deus a um futuro de esperança, promessa e reconciliação.
- Stephen J. Pope
Reproduzido via Amai-vos Tweet
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