Que bom ver a entrevista do papa Francisco
repercutindo no mundo: “se uma pessoa é gay, busca a Deus e tem boa vontade,
quem sou eu para julgar?” - foi a frase estampada em muitos jornais e
noticiários. Houve muitos comentários entusiastas, algumas reticências e até
quem afirmasse que nada mudou. Cabe avaliar o que mudou e em que medida.
A principal mudança é um papa
utilizar o termo ‘gay’. Por muitos séculos no ocidente, o termo usado para se
referir àquele tipo de pessoa era ‘sodomita’. É uma referência ao relato
bíblico do pecado de Sodoma: a tentativa de estupro que os habitantes desta
cidade fizeram aos hóspedes do patriarca Ló. Esta atitude nada tem a ver com o
amor entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo com relações sexuais livremente
consentidas entre pessoas adultas. Mas, por razões outras, Sodoma se tornou o
símbolo do homoerotismo pecaminoso que atrai o castigo divino, sob a forma de
catástrofes naturais. No século 19, surgiu o termo ‘homossexual’ para tratar desta
questão fora da perspectiva religiosa ou moral. Porém, a homossexualidade foi
logo considerada doença. E, no ensinamento atual da Igreja, é uma inclinação
desordenada que pode conduzir a atos igualmente desordenados e contrários à lei
natural.
A medicina hoje não considera
mais a homossexualidade como doença. Os movimentos sociais, porém, empregam o
termo gay (originalmente alegre), para evocar a autoestima das pessoas com esta
condição, bem como para reivindicar liberdade e igualdade de direitos. Na doutrina
católica, por sua vez, este termo tem um sentido negativo. Um candidato ao
sacerdócio que apóia a ‘cultura gay’ não pode ser ordenado. Portanto, um papa
se referir publicamente à pessoa ‘gay’, indica uma mudança no horizonte de
compreensão desta realidade.
Francisco também cita o Catecismo
da Igreja Católica para dizer que não deve haver marginalização destas pessoas
na sociedade, mas integração, pois todos são irmãos. Ao ser perguntado por que
não havia falado no Brasil sobre o casamento gay e o aborto, o papa justificou
que a posição da Igreja nestes assuntos já é conhecida, e não havia necessidade
de insistir. Ele preferiu falar de “coisas positivas que abrem caminho aos
jovens”. Portanto, a ênfase está na dimensão positiva da mensagem cristã e não
na reiteração de proibições. Aliás, o papa Bento XVI já havia dito que o
cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. No
entanto, ele não avançou neste caminho. O seu sucessor agora o faz.
Entre as objeções à entrevista de
Francisco, está a menção ao Catecismo. Isto engessaria a questão, pois só há
lugar na Igreja para o gay celibatário. Não é assim. A castidade, entendida
como a correta integração da sexualidade na pessoa, é um caminho gradual, um
crescimento pessoal em etapas (nº2343). Não é o reino do tudo ou nada. São
reconhecidos casos em que a tendência homossexual não é opção da pessoa, e
circunstâncias em que ela é compelida a agir de modo homossexual, sem culpa
alguma (Homosexualitatis problema, nº11).
Daí a importância do que diz o papa Francisco: a pessoa gay que busca a Deus e
tem reta intenção não deve ser julgada por ninguém, nem mesmo pelo papa. Ninguém
tem o direito de oprimi-la com assédio moral ou com terrorismo espiritual. E
esta pessoa pode ser muito encorajada por uma afirmação do Catecismo: o
primeiro de todos os representantes de Cristo é a consciência de cada um (nº1778).
Outra objeção é a defesa que o papa
faz da família formada pela união heterossexual. Este modelo de família seria o
único legítimo. Convém notar o elogio de Francisco à mulher paraguaia: “a mais
gloriosa da América Latina”. Após a Guerra do Paraguai (1864-1870), sobraram
oito mulheres para cada homem, e essas mulheres fizeram a escolha difícil e
arriscada de ter filhos para salvar a pátria, a cultura e a fé. O papa elogia
nada menos do que uma produção independente feita em escala nacional, ainda que
em circunstâncias extremas. Estas mulheres são mais gloriosas do que todas as
outras, incluindo as que vivem no modelo tradicional de família. Francisco não
está contrariando a moral católica, mas está mostrando corajosamente o amplo
alcance do caminho gradual na aplicação da lei moral. Isto o leva a não
absolutizar um modelo familiar. Eis um exemplo muito bom para a Igreja e para a
sociedade.
A
doutrina da Igreja é o seu modo de compreender o Evangelho, sempre mediado pela
cultura, em uma tradição consolidada ao longo de muitos séculos. Esta doutrina já
mudou em vários aspectos, e pode mudar mais. Mas isto passa pelo consenso dos
bispos, interagindo com os fieis e com a sociedade. O papa é o ministro da
unidade da Igreja Católica. Ele não muda as coisas com uma canetada. É
ingenuidade esperar o contrário. A escolha de Francisco é um novo enfoque
pastoral, explorando suas ricas possibilidades.
O que
favorece este processo é a “cultura do encontro”, preconizada pelo próprio
papa, onde através do diálogo todos têm algo de bom a dar, e todos podem
receber em troca algo de bom. Isto requer uma Igreja que não seja ensimesmada,
autorreferencial - como ele diz - mas capaz de testemunhar ao mundo um Deus que
só quer o nosso bem. O que prejudica este processo são os preconceitos. E um
deles, mencionado acima, é muito sutil: afirmar que só há lugar na Igreja para
o gay celibatário. Esta é uma leitura rasa da doutrina, que conduz a uma
simplificação perversa. Infelizmente, esta simplificação cruel tem unido
religiosos ultraconservadores, de um lado; e críticos implacáveis, de outro
lado. Ambos acabam alimentando um radicalismo estéril.
Convém
torcer por estes bons propósitos do papa Francisco. E os que têm fé podem e
devem rezar, pois não faltam resistências ferozes. Os bons ventos franciscanos
hão de prevalecer.
Equipe Diversidade Católica
2 comentários:
Não é verdade que só há lugar na Igreja para os gays que vivem na castidade, pois segundo o que sabemos esse universo (gay) é muito mais amplo. Alguns gays se casam com uma mulher, e acredito que se mantenham castos. Porém isso, na prática, não é regra, pois alguns continuam vivendo o drama e esforçam-se por se manterem fieis, porém nem todos deixam seus relacionamentos homossexuais. E os chamados héteros, com casamento hétero? ... mais comumente chamados bissexuais, com mulher e filhos? A compreensão disso que chamo drama de identidade sexual é que será, com certeza, o foco nas novas diretrizes da Igreja, para o bem cuidar de seus fieis. Esqueceu-se o autor do texto de mencionar as mulheres com esse tipo de orientação sexual, e que vivem o mesmo conflito juntamente com os homens.
É, essa questão dos gays que tentam se conformar à "norma" e buscam um casamento heterossexual é bem dolorosa, porque envolve uma negação de quem a pessoa é e cria uma distorção, um viver uma vida falsa, em que a dignidade da pessoa humana, na integridade de quem ela é (incluindo a dimensão erótico-afetiva) é profundamente desrespeitada. E, pior, a esposa e a família criada sobre essa base acabam sofrendo também dessa mesma mentira. Mas isso é fruto da crença em que existe uma "desordem" inerente à homossexualidade, o que não é verdade mas tantas vezes coloca a pessoa em busca de uma "correção" - e constitui, por si só, uma imensa violência moral.
Além disso, nem todos são chamados à castidade. Impor-se a castidade quando essa não é uma vocação da pessoa é, igualmente, uma violência.
Daí a importância, a nosso ver (e fazendo eco ao Concílio Vaticano II), de a consciência buscar com todo o empenho a verdade de cada um. Porque a verdade nos libertará.
Um abraço!
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