sábado, 27 de julho de 2013

A carne não é território do pecado


Texto de Juan Arias em que ele aponta que o papa Francisco não tem medo do contato físico com os fieis e que isso pode representar um retorno às raízes do cristianismo antes de afastar-se do judaísmo e instaurar uma igreja menos asséptica e mais humana.

"Para se reinventar, a Igreja precisa voltar às suas origens e abandonar o dualismo entre corpo e espírito, que segrega as mulheres e dita uma ética sexual incompatível com o presente.
Nunca se disse tanto que o catolicismo, para se salvar da sangria que o assola, precisa voltar a suas raízes, a suas origens, que começam na Palestina com os ensinamentos do profeta judeu Jesus de Nazaré.

Com o Papa Francisco voltou-se a falar ainda mais sobre a urgente necessidade de a Igreja recuperar suas essências. Ela nasceu, na visão de Jesus, como uma abertura do judaísmo a outros grupos não judeus em nome de um Deus que era pai de toda a Humanidade.

Quando se diz que o cristianismo deve se desprender da influência que recebeu no século IV do Império Romano e da contaminação platônica da filosofia grega com Santo Agostinho, pouco se fala de um ponto fundamental: recuperar a teologia do corpo, a ideia de que, como sempre defendeu o judaísmo que influenciou as primeiras comunidades cristãs, não existe diferença entre corpo e alma.

Até Paulo de Tarso, a dignidade do corpo é inseparável da atribuída à alma ou ao espírito. Só com a influência helênica o cristianismo se contamina e começa a ver o corpo como a “prisão” do espírito e, portanto, “território do pecado”, influenciando fortemente toda a ética sexual.

Para Santo Agostinho, já influenciado pela filosofia grega, o homem é “uma alma racional que tem um corpo mortal”. O corpo passa a ser secundário e perigoso para a santidade.

Por sua vez, a cultura judaica, na qual bebeu o primeiro cristianismo, foi diametralmente oposta à da Igreja de hoje. No judaísmo não existe a vergonha pelo corpo e, em consequência, pela sexualidade. Para o judaísmo, o pecado original não é o sexo.

Esse divórcio entre corpo e alma contaminou todo o universo da sexualidade na Igreja e acabou caindo sobre a mulher, considerada objeto de tentação sexual e, por isso, afastada do sacerdócio que lhe havia sido inato nas primeiras comunidades cristãs, quando nem o corpo nem o sexo eram vistos como território do mal.

E assim a mulher continua sem poder ser dona de seu corpo, com todas as consequências que isso traz.

O dualismo entre corpo e alma, introduzido no cristianismo a partir do século II, quando se distancia de suas raízes judaicas, acabou condicionando toda a ética sexual da Igreja até hoje.

Só no Concílio Vaticano II defendeu-se, por exemplo, que a sexualidade, além de um instrumento de procriação, pode ser um novo modo de comunicação humana.

O Papa Inocêncio III chegou a sustentar que o Espírito Santo se ausentava do quarto quando um casal mantinha relações sexuais, já que, segundo ele, o ato sexual, ainda que lícito, “envergonha Deus”.

Diz-se que Francisco é o Papa “do corpo”, que não teme o contato físico. Em seus quatro meses de pontificado, beijou mais pessoas, crianças e adultos, do que outros Papas em toda sua vida.

Talvez seja essa falta de medo do tato, da corporeidade, que faz Francisco ser amigo de muitos judeus, para os quais o corpo não é inimigo da alma, e sim o grande companheiro das relações verdadeiramente humanas e não só espirituais ou sublimadas.

Se analisamos os sacramentos da Igreja, em sua origem, são todos sacramentos “do corpo”. São realidades que se transmitem por meio do corpo, desde a eucaristia até o batismo ou a extrema-unção. A graça sempre atravessa o corpo, que é “obra de Deus”, e não “instrumento do demônio”, como defenderam tantos teólogos conservadores. Falando a uma devota que se gabava de dar sempre esmolas a um mendigo, Francisco perguntou: “Quando entrega a moeda ao irmão mendigo, você a joga ou a coloca nas mãos dele, tocando nelas?”

O Papa que se despojou de todos os símbolos de poder de uma Igreja que se envergonha do corpo e coloca a virgindade acima do matrimônio busca o contato corporal com as pessoas. Ele pediu aos sacerdotes que tirem a poeira da antiga prática cristã de pousar as mãos sobre a cabeça dos fiéis para abençoá-los. Francisco entendeu que, para ter credibilidade e responder aos novos desafios apresentados pela ciência e a ética modernas, a Igreja não pode continuar a se refugiar no medo da corporeidade, nem continuar a defender que o corpo é a fonte do pecado. Ela deve abrir novos caminhos do que ele chama de “teologia do encontro”.

Quando se refere ao ecumenismo, às diferenças que separam até os que se professam filhos de um mesmo Deus, Francisco dá o exemplo de que nas veias de crentes e não crentes “corre o mesmo sangue” e, por isso, devemos nos sentir parte de uma mesma “família”. Todo o resto, para ele, é ideologia.

Sua fonte de inspiração, na verdade, é Jesus de Nazaré, que escandalizou os próprios apóstolos pelo pouco medo que tinha do tato, da corporalidade. Ele se deixava lavar os pés por uma prostituta e curava os doentes “tocando-os” fisicamente. E até usava sua saliva para curar os cegos.

O medo do corpo, da sexualidade, do abraço com o irmão, levou a Igreja a se converter em uma religião “asséptica”, com vocação mais para anjos do que para humanos. Pois bem, a essência do cristianismo não é a “encarnação” e a “ressurreição”, esta última não só das almas mas também dos corpos? E os corpos estão atravessados pela sexualidade e o prazer do encontro. Juntos, corpo e alma se salvam ou se condenam.

Juan Arias é jornalista e escritor, correspondente do “El País” no Brasil, autor de “Jesus, esse grande desconhecido” e “A Bíblia e seus segredos”, entre outros livros."






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