No próximo dia 27 de agosto, às 19 horas, o Diversidade Católica e a Edições Loyola, em parceria com a Blooks Livraria, organizarão no Rio de Janeiro o evento de lançamento do livro "Homossexuais Católicos: como sair do impasse", de Claude Besson, lançado no Brasil recentemente. Besson é uma das lideranças do grupo francês "Reflexão e Partilha", que tem uma história de mais de 10 anos de trabalho pastoral com pessoas gays e católicas, e seu livro promete oferecer pistas importantes para este apostolado aqui no Brasil.
Em preparação para o evento, publicamos aqui uma bela resenha sobre o livro, a fim de oferecer uma pequena pitada das discussões. A análise é de Marcelo Maldonado, que é escritor e bacharel em Literatura Brasileira, e que será um dos palestrantes do lançamento. Para maiores informações, consulte a página do evento no Facebook. Divulgue e participe!
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro
Quando Mário de Sá-Carneiro pôs fim à própria vida, às vésperas de completar 26 anos, num pequeno hotel em Paris, nos últimos dias de abril de 1916, aquele ato pareceu-lhe a única saída para o grande impasse de sua existência: como construir/ constituir uma identidade cujo conflito com a realidade não resulte na dispersão?
Não é à toa que este (Dispersão) é o título do único volume de poesias que publicou em vida e também do célebre poema em que declara: “Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim.” Grande parte da obra de Sá-Carneiro é permeada pela questão da alteridade, cujo sentido profundo reside na impossibilidade de ser, na inadequação do existir e na incomunicabilidade com o outro – grafado no poema com maiúscula, o que significa o outro enquanto entidade mítica. Preso em si mesmo e também aprisionado dentro de uma realidade hostil, o poeta não vislumbra qualquer possibilidade de diálogo para o estabelecimento de uma identidade concreta (e, portanto, de uma existência plena), quer no domínio da criação estética pura, quer no campo da vida cotidiana.
A homossexualidade surge, na obra de Sá-Carneiro, como uma espécie de mote para esse impasse: o espelhamento de um eu num outro que jamais pode se consumar porque se consome num jogo conflituoso de desejos e proibições. É o que declara Ricardo de Loureiro, personagem da novela A Confissão de Lúcio, de 1913:
Nunca soube ter afetos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! (…) Para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou homem ou mulher. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo, eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.[1]
Claude Besson, ao que parece, lida com uma questão bastante semelhante em seu estudo Homossexuais católicos: como sair do impasse (Edições Loyola, 2015), no qual expõe as contradições entre as rígidas posturas canônicas adotadas pelo apostolado católico em relação aos homossexuais que desejam não apenas professar a fé cristã, mas tornar-se parte atuante da vida de suas comunidades. Eu não sou eu nem sou o outro: como conciliar uma identidade – construída a duras penas em meio a uma realidade social que não contempla ou sequer legitima os modelos gays – com a fé cristã quando o discurso oficial da Igreja trata da condição homossexual de forma traumatizante, julgadora, culpabilizante e excludente?
Besson inteligentemente estrutura suas reflexões em três estágios distintos: em primeiro lugar, aplica um viés antropológico ao tratar da homossexualidade à luz de teorias que analisam suas possíveis origens e que, por fim, dada a complexidade da questão da formação da identidade pessoal – para a qual tanto características inatas quanto adquiridas tornam-se elementos constitutivos –, descartam o seu desenvolvimento enquanto fruto de uma escolha individual consciente e deliberada.
Ao avançar nesse sentido, o autor analisa o processo de reconhecimento da condição homossexual a partir das etapas da descoberta, da negação e rejeição, das tentativas de subverter a orientação sexual e da aceitação em si, após um percurso em que idas e vindas não raro expõem os indivíduos a sentimentos de vergonha, culpa, frustração, clandestinidade, estigmatização e violência, nos seus mais diversos graus e manifestações. Educado num mundo em que a heteronormatividade exclui e rechaça qualquer outra possibilidade de manifestação da sexualidade, o indivíduo homossexual carece de modelos positivos a respeito da própria condição e acaba por assimilar essa proibição, sofrendo um processo de homofobia interiorizada.
O autor aborda ainda o mesmo processo de descoberta através do ponto de vista da família, para a qual o evento de percepção ou anúncio da homossexualidade de um filho ou filha na maioria das vezes representa um ganho significativo nas relações pessoais, no sentido de um maior entendimento e acolhimento entre seus membros. A importância do diálogo dos pais com os adolescentes é enfatizada para além das experiências sexuais que naturalmente ocorrem nessa fase da vida, devendo pautar-se no fortalecimento da confiança dos jovens em suas potencialidades e no desenvolvimento de uma afetividade mais amadurecida.
Encerrando essa primeira parte, a questão da alteridade se interpõe como importante discussão a respeito da noção errônea de que os homossexuais rejeitam a diferença entre os sexos, o que significaria a mera redução de homens e mulheres aos seus papéis sexuais. Eu não sou o outro: a alteridade se estabelece a despeito da igualdade sexual, pois se alicerça em bases mais profundas – o reconhecimento do outro em sua história pessoal, afetiva, educacional, em seus valores éticos, suas vivências e escolhas – do que apenas no valor diferencial (e impessoal) de um objeto de pulsão.
Num segundo momento, Besson examina a aparente contradição contida na condição “gay católico”, no que considera a priori dois posicionamentos excludentes, uma vez que o indivíduo homossexual, ao confrontar-se com o parecer oficial da Igreja quanto à sua realidade, reveste-se de sentimentos de desonra, culpa, vergonha e desesperança, causando um inevitável afastamento e até mesmo um abandono da fé cristã.
Como já havia feito na primeira parte, o autor entremeia suas reflexões com delicados e contundentes depoimentos de indivíduos que, através de suas experiências pessoais, descrevem as mais variadas reações diante da constatação das contradições entre os cânones do Magistério e a própria palavra de Jesus Cristo pregada pelos evangelhos. A maioria desses depoimentos refere-se a um sentimento doloroso de solidão e aponta para situações extremadas como as frequentes tentativas de suicídio relatadas.
Ao contínuo e constante avanço das abordagens do tema no âmbito da sociedade civil e de uma ampla difusão de informações e discussões a seu respeito, o Magistério manteve-se num silêncio perturbador e omisso, quebrado apenas para reforçar as teses de que a manifestação da homossexualidade é reprovável e, portanto, pecaminosa. No entanto, a partir principalmente das reformas propostas pelo Concílio Vaticano II, houve uma ligeira evolução na postura doutrinal no sentido de reprovar os atos homossexuais, ao que o acolhimento ao indivíduo passou a ser estimulado com “respeito, compaixão e delicadeza.” Na prática, nas paróquias e comunidades, o que se deu foi que esse acolhimento manifestou-se na manutenção do silêncio em torno do assunto ou, quando muito, nos casos em que sacerdotes eram procurados por homossexuais para uma orientação, em conselhos sobre “a prática da sublimação dos instintos inferiores na castidade pelas virtudes do autodomínio.” Isso, obviamente, acabou por expor outro posicionamento excludente: como pode se dar esse acolhimento se, ao mesmo tempo, a doutrina rejeita e condena aquilo que, no homossexual, é parte constitutiva de sua identidade?
A esse respeito, Besson esmiúça na própria Bíblia as referências que alegadamente corroborariam a nomeação específica da homossexualidade como comportamento ou prática abominável e chega à (inevitável) conclusão de que não é possível fazê-lo, uma vez que as interpretações do texto bíblico à luz de suas contextualizações histórico-sociais não permitem reconhecer essa questão tal como ela se coloca na sociedade moderna: numa abordagem moral e ética individual. O autor expõe as análises de teólogos sobre as cinco passagens que mencionam a homossexualidade – a saber: dois versículos do Levítico, um versículo da Epístola de São Paulo aos Coríntios, um versículo da Epístola de São Paulo a Tito e um texto da Epístola de São Paulo aos Romanos – além da célebre narrativa de Sodoma e Gomorra e, finalmente, sobre as alusões à criação do homem e da mulher no livro do Gênesis para concluir que todas dizem muito mais respeito à prática em si em contextos ligados à conformidade ritual dos critérios de pureza, de pertença religiosa ou de idolatria do que à sua natureza sexual propriamente dita.
Na terceira e última parte de seu estudo, Claude Besson aponta para algumas possíveis estratégias para provocar o avanço das intermediações entre indivíduos homossexuais e agentes ministeriais e romper o silêncio em torno do assunto. O autor aposta no aprofundamento da fé cristã através de postulados como os de André Fossion, que convidam a repensar o cristianismo e a uma nova compreensão da fé baseada na distinção dos seus cinco efeitos salutares, três dos quais dizem respeito intrinsecamente à experiência homossexual:
– Libertação do medo de Deus: restauração de uma relação de confiança e reconhecimento no amor divino;
– Libertação da dominação do pecado: o amor incondicional de Deus esvazia a necessidade de um castigo, livra o indivíduo da culpa e restaura a esperança;
– Liberdade para desejar: livre do pecado, o indivíduo engaja-se com mais compromisso no projeto de caridade do Cristo, em favor de uma humanidade mais fraterna.
A esse chamado, o sentido da vida e das relações humanas (leia-se, da própria afetividade) passa a ser construído a partir da realidade da vida, a partir do(s) outro(s) e com o(s) outro(s), cotidianamente, uma realidade na qual o desejo de amar pauta-se pela liberdade de consciência. Em certo ponto, Besson afirma: toda relação de amor é uma abertura para o outro. Desta maneira, abre-se um novo entendimento para o termo “fecundidade” quando aplicado a relações homoafetivas fundamentadas nessa intermediação, traduzido na expressão “parentalidade espiritual”, na qual um casal do mesmo sexo pode perfeitamente criar condições plenas de uma vida fecunda no envolvimento com o trabalho, com a comunidade, com o acolhimento, a caridade, a pastoral, o apoio mútuo, a criação artística, a pesquisa científica, etc.
Tendo em vista esse engajamento espiritual, o autor propõe outros tipos de engajamento a fim de impulsionar um diálogo sereno e produtivo sobre a questão da homossexualidade e sua conciliação com a fé cristã e dá exemplos de como, na França, algumas iniciativas conseguiram criar espaços para a partilha de experiências e a troca de informações entre as comunidades e seus membros. Besson enfatiza em primeira instância a necessidade de se falar sobre o assunto, de tirar a palavra homossexualidade literalmente do armário e ter a coragem de mencioná-la nos cultos, nas reuniões paroquiais, sempre acompanhada da disseminação da informação correta e sem mistificações. O autor menciona, então, a experiência do grupo Réflexion et Partage (Reflexão e Partilha), do qual é um dos fundadores, e de seus esforços para ajudar as comunidades cristãs a acolher a realidade homossexual.
Em seguida, salienta que é preciso ocupar um lugar em que se possa começar um trabalho de integração dos indivíduos homossexuais nas comunidades. Embora não seja tão simples assim, o autor dá como exemplo bem sucedido o que aconteceu em Saint-Merry, cuja comunidade foi procurada por membros do grupo David e Jonathan para abrigar um núcleo de orações e troca de experiências. Sob a condição de também participar da vida da comunidade local, o inicialmente pequeno núcleo foi tomando proporções cada vez mais expressivas, diluindo preconceitos, assumindo uma postura positiva e inclusiva e ganhando ampla visibilidade nas atividades paroquiais.
Por fim, mas não menos importante, reforçando sempre o conceito de que uma igreja se faz com (e para) os seus membros, ressalta a importância do favorecimento de locais de acolhimento e escuta dentro das dioceses, através da criação de pastorais que se ocupem especificamente do tema de forma ordenada, estruturada e constante. As iniciativas nesse sentido, apesar de terem gerado frutos importantes e bastante significativos, infelizmente ainda são poucas e isoladas. No Brasil, núcleos como o Diversidade Católica, no Rio de Janeiro, e o Grupo de Ação Pastoral da Diversidade, em São Paulo, tem desenvolvido ações não apenas centradas no acolhimento e partilha de experiências, mas também no sentido de promover um diálogo com a sociedade e instâncias superiores da hierarquia eclesiástica.
Na conclusão do seu estudo, Claude Besson afirma que o seu maior intento foi o de abrir portas. Talvez tenha sido essa a sua compreensão para responder à questão proposta, contida igualmente no poema de Mário de Sá-Carneiro: eu sou Eu – em construção, muitas vezes disperso, fragmentado – e devo necessariamente me abrir, sair de mim, deixar de ser qualquer coisa de intermédio, cruzar a ponte e bater à porta do Outro, que, por sua vez, deve estar disposto ao diálogo, à troca de impressões, ao enriquecimento de experiências que estabelecem o entendimento.
Como ensina Besson, para quem o medo é mau conselheiro, deve ser a Fé (e não o tédio) o pilar de sustentação desse processo.
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[1] SÁ-CARNEIRO, Mário de. A confissão de Lúcio. In: Obras Completas, pg. 376, Alexei Bueno (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.